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Rio 2016: refugiado diz se sentir parte do mundo

Linha fina
Pela primeira vez, dez refugiados participarão dos Jogos, representando o COI. Saiba quem são. “Este é o começo de nossas vidas, que serão mudadas para sempre", diz atleta
Imagem Destaque
São Paulo – As histórias de vida, as modalidades e a trajetória no esporte são muito diversas, mas o sentimento que prevalece às vésperas da Olímpiada entre os dez atletas refugiados que participarão dos Jogos é um só: pertencimento. Com guerras, conflitos e perseguições já no passado, o que fica agora é a possibilidade de recomeço. "Sentimos que somos parte do mundo, como seres humanos”, afirmou o velocista refugiado sul-sudanês Yiech Pur Biel.

A inédita Equipe Olímpica de Atletas Refugiados foi formalmente apresentada ao Comitê Olímpico Internacional (COI) na terça 2, durante sua 129ª sessão, que reúne todos os seus membros e ocorre apenas uma vez por ano. Durante a tarde, os atletas concederam entrevista coletiva para jornalistas brasileiros e estrangeiros.

“Este é o começo de nossas vidas, que serão mudadas para sempre", afirmou Yiech, que disputará as provas de atletismo na categoria 800 metros. A equipe competirá em nome do COI, nas modalidades natação, judô e atletismo. Caso ganhem medalhas, a bandeira oficial das Olimpíadas, com a imagem dos cinco arcos, será erguida, ao som do hino olímpico.

"Obrigado a todos que nos apoiam e que nos deram a chance de estar aqui e perseguir nossos sonhos. Somos seres humanos, e não apenas refugiados. Somos como todas as pessoas no mundo", disse a nadadora síria Yusra Mardini, de 18 anos, que disputará 200 metros nas categorias borboleta e nado livre. Ela aprovou as piscinas do Parque Olímpico. “Já nos encontramos com grandes campeões olímpicos, é uma experiência incrível. Estamos muito felizes de estar aqui.”

A equipe é composta por dois nadadores sírios, dois judocas congoleses, um maratonista etíope e cinco corredores sul-sudaneses. “Quero continuar no esporte e olhar para o futuro e não para tudo o que foi perdido. Estamos aqui como exemplo de todos os refugiados do mundo. Podemos fazer qualquer coisa, como todas as outras pessoas”, disse a sul-sudanesa, Rose Nathike Lokonyen, de 23 anos, que disputará a prova dos 800 metros.

O presidente do COI, Thomas Bach, afirmou que a participação da equipe fará “o mundo ficar mais consciente da causa do refúgio”. "A participação dos refugiados nos Jogos Olímpicos é um sinal de esperança para todos os refugiados do mundo. Eles não tinham um país para defender nem uma bandeira para competir. Agora eles têm.”

"Foi difícil deixar nossos países, e não escolhemos o nome de refugiados. Estou contente por ser parte deste time e por representar mais de 60 milhões de pessoas. Esperamos inspirar novos atletas em todo o mundo, não apenas refugiados", disse a nadadora Yusra, durante a sessão do COI.

Em 2015, pela primeira vez na História, o número de refugiados superou os 60 milhões de pessoas (total equivalente à população do Reino Unido) e chegou à 65,3 milhões de pessoas obrigadas a deixar suas casas para fugirem de guerras e perseguições, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Desde 2011, quando os conflitos na Síria tiveram início, o número de refugiados não para de aumentar.
CONHEÇA OS ATLETAS
Ramis Anis, 25 anos
Natural da Síria, vive na Bélgica e disputará os 100 metros borboleta na Natação. Rami começou a treinar aos 14 anos, em Alepo, seguindo os passos de um tio que participava de campeonatos na modalidade. “A natação é a minha vida. A piscina é o meu lar”, disse. “Com a energia que eu tenho, estou seguro que posso alcançar os melhores resultados. Será uma grande emoção participar das Olimpíadas”.

Quando os conflitos se intensificaram no país, a família mandou o jovem para Istambul, para morar com o irmão mais velho que estudava na Turquia. “Eu pensei que ficaria na Turquia por uns dois meses e depois voltaria ao meu país”, disse.

Sem nacionalidade turca, ele não podia competir. “É como se alguém que está estudando, estudando, estudando e é impedido de fazer as provas”. Para perseguir seu sonho de se tornar nadador profissional, ele embarcou em um bote inflável para a ilha grega de Samos e por um erro chegou à cidade belga de Ghent. Lá ele passou a treinar nove vezes por semana com a ex-nadadora olímpica Carine Verbauwen.


Yiech Pur Biel, 21 anos
Vive no Quênia e competirá nos 800 metros. Forçado a fugir dos conflitos no Sudão do Sul, em 2005, acabou chegando sozinho em um campo de refugiados ao norte do Quênia, onde começou a jogar futebol e depois migrou para o atletismo. “A maioria de nós enfrenta uma série de desafios”, disse Yiech. “No campo de refugiados, não temos instalações nem calçados. Não há academia. Até mesmo as condições climáticas não favorecem os treinos devido ao calor intenso que faz desde o amanhecer até o anoitecer”.

Yiech afirmou que competir nos Jogos do Rio poderá motivar outros refugiados e levar a eles mensagem de esperança. “Seja por meio da educação, ou mesmo correndo, podemos mudar o mundo”, disse.


James Nyang Chiengjiek, 28 anos
Disputará os 400 metros. Vive no Quênia desde os 13 anos depois de ter sido forçado a fugir de casa, no Sudão do Sul, para não ser sequestrado por grupos que faziam recrutamento forçado de crianças soldados. Frequentou a escola e se juntou a um grupo de treinamento. “Ao correr bem, estou fazendo algo bom para ajudar os outros”, disse. “Talvez entre eles (refugiados) existam outros atletas talentosos, mas que ainda não tiveram oportunidade.

No começo, ele não tinha sequer tênis adequados para a corrida e era obrigado a pedir calçados emprestados. “Todos temos um monte de lesões por causa dos calçados inadequados”, disse. “Por isso nós compartilhávamos. Pois se você tivesse dois pares de tênis, podia ajudar a quem não tinha nenhum.”


Yonas Kinde, 36 anos
Nascido na Etiópica, vive em Luxemburgo e disputará a maratona. “Eu tenho energia, e mais e mais energia”, diz. “Normalmente treino todos os dias, mas quando ouvi esta notícia (sobre a Equipe Olímpica de Atletas Refugiados), comecei a treinar duas vezes por dia para estes Jogos.”

Yonas, que deixou seu país temendo guerras, tem aulas de francês regularmente e dirige um táxi. Completou uma maratona na Alemanha, em outubro do ano passado, no tempo de 2 horas e 17 minutos (que em Londres 2012 foi o tempo do 30º colocado, entre os 85 que concluíram a proba de 42,195 quilômetros). “É claro que temos problemas, mas podemos fazer tudo no campo de refugiados, então isso ajudará os refugiados atletas.”


Anjelina Nada Lohalith, 21 anos
Natural do Sudão do Sul, vive no Quênia e está no Rio para disputar os 1.500 metros. Tinha 6 anos quando foi forçada a sair de sua casa fugindo de uma guerra. Nunca mais viu ou falou com seus pais. Há algum tempo recebeu a notícia que ainda estavam vivos, mas não sabe como se encontram depois que uma crise alimentar assolou a região no ano passado.

Ela descobriu que era boa no atletismo depois de vencer competições escolares no campo de refugiados, ao norte do Quênia. Porém, ela só percebe o quão rápida é quando treinadores profissionais chegaram ao campo para selecionar atletas. “Foi uma surpresa”, disse. No Rio de Janeiro, quer conquistar boas posições para receber prêmios em dinheiro. Anjelina sonha reencontrar os pais e construir uma casa para eles.


Rose Nathike Lokonyen, 23 anos
Do Sudão do Sul, correrá os 800 metros. Vive no Quênia desde que tinha 10 anos, após ser obrigada a fugir da guerra em seu país. Descobriu seu talento no ano passado, quando um professor sugeriu que participasse de uma corrida de 10 quilômetros, terminando em segundo lugar. “Eu não tive nenhum treinamento. Foi a primeira vez que corri”, disse sorrindo.

Desde então, mudou-se para um campo de treinamento. “Eu serei uma representante do meu povo lá no Rio e talvez, se for bem-sucedida, possa voltar e realizar uma corrida para promover a paz e unir as pessoas”. Um dos desafios que enfrentará é com as lesões adquiridas por não treinar com um tênis profissional “Eu posso ver a corrida como um esporte ou, como agora vejo, uma carreira.”


Paulo Amotun Lokoro, 24 anos
Correrá os 1.500 metros. Há alguns anos, Paulo era um pastor que cuidava das poucas cabeças de gado de sua família, no Sudão do Sul, há anos em guerra. Os conflitos o empurraram para o Quênia, onde desenvolveu novas ambições: “Quero ser campeão mundial”. Ele espera se destacar e conseguir dinheiro com a corrida para sustentar sua minha família.

Pela escola do campo de refugiados, conquistou um lugar no grupo que treina perto de Nairobi, capital do Quênia, sob orientação do corredor queniano Tegla Loroupe, detentor de vários recordes mundiais. “Antes de vir aqui, eu nem sequer tinha tênis para treinar”, disse. “Eu era um daqueles refugiados lá no campo, e agora alcancei um lugar especial. Vou conhecer muitas pessoas. Meu povo vai me ver na televisão, no Facebook.”


Yolande Mabika, 28 anos
Judoca da República Democrática do Congo, vive no Brasil e disputará na categoria peso médio. Foi separada dos pais ainda criança devido a combates no leste de seu país. Diz ter poucas lembranças desse período, além de correr sozinha e ser pega por um helicóptero que a levou para a capital, Kinshasa. Lá foi viver em um centro para crianças deslocadas onde conheceu o judô e passou a competir. “O judô nunca me deu dinheiro, mas me deu um coração forte”, diz. “Eu fui separada da minha família e costumava chorar muito.”

Ela vive Rio desde 2013, quando veio competir no Campeonato Mundial de Judô e fugiu, devido há anos de maus tratos do seu treinador, que confiscava seu passaporte, restringia sua alimentação e a mantinha enjaulada quando não vencia torneios. Nas ruas, conseguiu ajuda, foi acolhida como refugiada, e passou a treinar na escola fundada e mantida pelo brasileiro Flavio Canto, medalhista olímpico. “Sou uma atleta competitiva, e essa é uma oportunidade que pode mudar a minha vida”, disse. “Espero que minha história seja um exemplo para todos, e talvez a minha família me veja e possamos estar juntos novamente.”


Yusra Mardini, 18 anos
Natural de Damasco, na Síria, a nadadora competirá nos 200 metros livres e borboleta. Mais que um esporte, a natação a ajudou a salvar a vida de sua família e de outros refugiados enquanto cruzavam a fronteira em um bote, fugindo da guerra. A embarcação encalhou na costa do Turquia e começou a encher de água. Yusra não teve dúvidas: pulou na água junto com sua irmã e empurrou o barco em direção à Grécia. “Algumas pessoas não sabiam nadar. Teria sido vergonhoso se as pessoas em nosso barco tivessem se afogado.”

Depois de chegar à ilha grega de Lesvos, viajou para o norte do país com um grupo de solicitantes de refúgio. “Eu quero mostrar a todo mundo que, depois da dor, depois da tempestade, vem a calmaria”, disse. Ela representou a Síria no Campeonato de Natação no Mundial Fina em 2012. Desde setembro de 2012, treina na Alemanha.


Popole Misenga, 24 anos
Judoca nascido na República Democrática do Congo, vive no Brasil desde 2013. Quando tinha 9 anos teve de fugir de conflitos na sua cidade, separou-se da família e foi resgatado após oito dias vivendo em uma floresta e levado para um campo de refugiados, onde começou a praticar judô. “Quando você é uma criança, você precisa ter uma família para lhe dar instruções sobre o que fazer, e eu não tinha uma. O judô me propiciou serenidade, disciplina, compromisso,  tudo.”

Popole enfrentou problemas com o treinador, que o trancava em uma jaula quando não vencia campeonatos, com apenas pão e café. No Mundial de Judô realizado há três anos no Rio de Janeiro, foi eliminado na primeira fase por não ter recebido alimentação do seu treinador. Depois disso, decidiu pedir refúgio no Brasil. “No meu país, eu não tinha um lar, uma família ou crianças. A guerra causou muita morte e confusão, e eu pensei em ficar no Brasil para melhorar a minha vida.”

Ele também treina na escola de Flavio Canto e espera que seus pais assistam sua competição. “Eu quero mostrar que os refugiados podem fazer coisas importantes. Eu vou ganhar uma medalha, e dedicá-la a todos refugiados.”


Rede Brasil Atual - 4/8/2016
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