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Chapéu
Segurança Pública

Artigo 19: falta de transparência legitima violência do Estado

Linha fina
Pesquisa divulgada se baseia em 66 pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação. "A falta de transparência afasta qualquer tipo de controle social", afirma advogada da ONG
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Foto: Jennifer Glass

São Paulo – O estudo Repressão às escuras – uma análise sobre transparência em segurança pública e protestos, divulgado há poucos dias pela Artigo 19, organização não-governamental de direitos humanos, revela que nem mesmo a existência da Lei de Acesso a Informação (LAI) tem sido eficaz para tornar mais transparente as políticas de segurança pública no Brasil.

O estudo se baseou em 66 pedidos de informação feitos via LAI, em 2016, para diversos órgãos públicos do país, com perguntas divididas em três eixos: pedidos enviados à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e à Polícia Militar, requisitando dados sobre dois protestos que foram duramente reprimidos em 12 e 21 de janeiro de 2016; solicitação de informação encaminhada a todos os estados questionando a existência de um protocolo que discipline o uso da força de agentes policiais em manifestações e protestos sociais; e pedidos de informação enviados ao Ministério da Defesa, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Polícia Federal, às secretarias de Segurança Pública e Ministério da Justiça requerendo informações sobre medidas e políticas de segurança pública que seriam adotadas na Olimpíada do Rio de Janeiro.

Segundo Camila Marques, advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Artigo 19, desde 2013 a organização estuda as violações ocorridas nos protestos que têm acontecido no Brasil, tentando entender como o poder público tem violado esse direito. Nesse contexto, ela explica, a LAI é o principal instrumento para tentar entender a atuação das forças de segurança nos protestos.

"A principal conclusão do relatório é que esse cenário de secretismo autoriza e legitima o contexto de violência institucional que existe no Brasil. Sabemos que as políticas de segurança pública são altamente contestadas pela academia, pela população e pelas organizações da sociedade civil, e a falta de transparência justifica e faz com que essas políticas sejam ainda mais violentas, porque afasta qualquer tipo de controle social sobre elas", afirma Camila Marques.

A advogada afirma que por meio do estudo foi possível identificar quatro categorias de informações em que o poder público "de pronto já nega o acesso".' São elas: protocolos operacionais de atuação, que na maioria das vezes se alega serem igilosos; informações sobre operações específicas; dados sobre investimentos; e informações referentes a construção de políticas públicas de segurança, no caso específico, à Olimpíada.

Para Camila Marques, os protocolos de atuação da polícia são instrumentos importantes para que a população possa exigir seu cumprimento. Na sua opinião, não haveria problema de torna-los públicos por serem protocolos que regem operações genéricas sobre determinada situação.

No caso do pedido de dados sobre operações específicas, a Artigo 19 solicitou à Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar do Estado de São Paulo quantas bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral foram usadas em 12 e 21 de janeiro de 2016 para reprimir os protestos contra o aumento da tarifa do transporte público. Naqueles dias, vídeos na internet e reportagens na imprensa mostravam que a polícia havia usado muitas bombas na repressão da manifestação. O jornal O Estado de S. Paulo, inclusive, chegou a fazer uma contagem de uma bomba a cada sete segundos durante determinado período de uma das manifestações.

 Apesar de todas as evidências, a equipe da Artigo 19 se surpreendeu com a resposta recebida sobre o total de bombas utilizadas: 'Nenhuma'. A organização então recorreu e a Polícia Militar retificou sua primeira resposta, mas ainda sim, lembra Camila, com uma quantidade de bombas muito abaixo da realidade. 'Existe uma dificuldade de fornecer uma prestação de contas, de dizer quantas pessoas foram detidas, quantos blindados havia na rua, esses dados são muito sensíveis', analisa. O mesmo ocorre com informações relacionadas a investimento, seja em gastos com softwares ou balas de borracha. 'Essas informações geralmente são negadas', afirma Camila Marques.

A violação da Lei de Acesso - 'Quais as normativas adotadas pela Secretaria de Segurança Pública especificamente, para o uso da força durante manifestações e protestos sociais? Buscam-se normativas como, por exemplo, padrões operacionais, portarias internas e protocolos de uso de força utilizados nesses casos.'

Essa pergunta foi enviada, via LAI, para as secretarias de segurança de todos os estados do país. Apenas Roraima e Pernambuco enviaram as normativas pedidas. Acre, Piauí e Sergipe, simplesmente, nunca responderam. Amazonas, Bahia, São Paulo e Paraná responderam ter os protocolos, mas não enviaram. A grande maioria dos estados do país respondeu de forma genérica (conforme tabela abaixo), como dizer que "as normativas que regulamentam a atuação policial estão na Constituição Federal".

Com base nas respostas, o estudo da Artigo 19 divide em três categorias as violações da LAI: questões operacionais (dificuldade para achar o serviço no site ou falta de opção de recurso); questões procedimentais (60% dos pedidos sofreram atraso ou impuseram prazos de recurso em desacordo com a própria LAI); e por fim, a questão do conteúdo e dos sigilos.

'A LAI diz que a transparência é a regra e o sigilo a exceção para proteger o interesse público, porém esse sigilo deve ser balanceado e não imposto de forma discricionária', afirma Camila Marques. 'Quando o poder público decreta o sigilo, ele deve ter duas perguntas em mente: ‘O que vai trazer mais benefício à sociedade? O sigilo ou sua publicidade?’ O que vemos é que esse balanceamento quase nunca é feito pelos órgãos de segurança pública, porque existe a tendência de que haja um abuso e o uso indiscriminado da exceção de sigilo. Por mais que o documento seja relacionada a segurança pública, não é por isso que ele deve ser sigiloso, não é isso que a LAI quer dizer e foi nisso que nós esbarramos.'

Para a advogada da Artigo 19, a falta de transparência nos órgãos públicos está relacionada as próprias estruturas do Estado brasileiro, que passou muitos anos por uma ditadura civil-militar, uma estrutura de poder que afastava qualquer tipo de controle social e transparência de suas ações.

'Isso solidificou essa cultura de sigilo que temos no Brasil, por mais que a Constituição Federal traga esses princípios de publicidade e transparência que deve reger o poder público, essa cultura de sigilo não se muda de uma hora para outra. Acredito que a maior resistência dos órgãos de segurança pública na aplicação da LAI tenha uma relação com esses anos de regime ditatorial, por haver o entendimento de que a segurança pública é considerada um tipo de política pública especial, que deve ser analisado a parte, que a população não deve exercer controle social', pondera Camila Marques.

Na interpretação da advogada, as autoridades que atuam na área da segurança pública agem como se não tivessem que prestar contas do que fazem. "Parece que as autoridades dos órgãos de segurança, quando se referem aos assuntos que atuam, parece que eles estão falando de algo que não é política pública, parece que é algo muito distinto de política de educação e saúde, e sim algo que só diz respeito as autoridades, o que é algo completamente diferente do que nossa Constituição determina", afirma Camila.

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