Brasília - Casos recentes de preconceito racial, como o de Kaillane Campos, de 11 anos, que levou uma pedrada na cabeça, no Rio de Janeiro, depois de sair de um culto de candomblé, e o da jornalista Maria Júlia Coutinho, a Maju, que recebeu ofensas na internet, mostram que o país da miscigenação ainda não venceu esse tipo de discriminação.
"Quanto mais se nega a existência do racismo no Brasil, mais esse racismo se propaga", destacou a ministra da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), Nilma Lino Gomes.
Nos cinco anos do Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/2010, lembrados nesta segunda-feira 20, ela conversou com a Agência Brasil e avaliou o cenário da busca pela igualdade racial no país. Para ela, entre os principais avanços estão as cotas em concursos públicos e a política voltada ao atendimento de saúde da população negra.
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Agência Brasil: De que forma o racismo se manifesta no Brasil?
Nilma Gomes: O racismo brasileiro tem uma peculiaridade: a ambiguidade. É um fenômeno que se afirma através da sua própria negação. Quanto mais se nega a existência do racismo no Brasil, mais esse racismo se propaga. E essa é uma característica que nos desafia muito a superá-lo e a desvelá-lo. Conhecer e reconhecer essa característica do racismo brasileiro já são avanços, porque antes compreendia-se muito mal o que era o racismo no Brasil.
Diante desse cenário, o que o Estatuto da Igualdade Racial representa hoje?
O estatuto representa hoje para o Brasil uma conquista e é uma conquista que foi organizada, demandada pelos movimentos sociais, em particular, o movimento negro. Passou por um processo de uma grande discussão no Congresso Nacional, foi ratificado pelo governo federal e efetivamente hoje podemos falar que temos, além da Constituição Federal, uma lei nacional que garante direito à população negra brasileira.
Um dos mecanismos previstos no estatuto é o de uma ouvidoria para receber as denúncias de preconceito. Como o órgão tem funcionado? No ano passado, o governo anunciou a criação do Disque Igualdade Racial, o 138. Como está a implementação da medida?
Nossa Ouvidoria tem recebido ao longo do tempo um aumento significativo das denúncias. Ela foi criada em 2011. No primeiro ano, temos registradas 219 denúncias e essas denúncias foram crescendo ano a ano. Em 2015, apenas no primeiro semestre, já superamos o número de denúncias do primeiro ano, temos até agora mais de 270 denúncias. Mas essa questão no Brasil ainda tem que avançar muito, ainda temos um histórico de subnotificação dos crimes raciais. Nem sempre as pessoas formalizam denúncias e temos todo um processo na Ouvidoria da Seppir que é de registrar os casos, acompanhá-los e encaminhá-los para os órgãos e instituições responsáveis. O Disque Igualdade Racial está ainda na fase de estudos técnicos. Ele ainda não foi lançado, porque queremos lançá-lo de maneira bem completa, para que funcione de fato como uma ferramenta de combate ao racismo.
Quais foram as conquistas alcançadas a partir do estatuto?
O Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o Sinapir, que está previsto no estatuto, é muito importante porque é a atuação do governo federal nos estados, Distrito Federal e municípios. Estamos exatamente neste momento na Seppir construindo a adesão voluntária ao Sinapir. Mais um avanço é a própria política de cotas nos concursos públicos, a Lei 12.990/2014, que já está em vigor. Já temos concursos sendo realizados, e essa legislação vai, a médio e longo prazo, nos possibilitar ter o perfil da realidade étnico-racial brasileira nos cargos públicos. Outra ação importante é a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, no Ministério da Saúde, que vem se desenvolvendo ao longo dos anos com a participação dos movimentos sociais e da Seppir, como um dos articuladores.
As cotas no serviço público esbarram em alguns problemas. Muitos concursos oferecem apenas uma vaga, a reserva de 20% das vagas prevista na lei passa a valer a partir de três vagas, entre outras questões. A Seppir pretende agir de alguma forma para regulamentar a lei?
A lei é autoaplicável. O que a Seppir tem discutido com outros ministérios e também com estados que implementaram as leis baseadas na lei federal é algum tipo de orientação para a implementação da legislação. Isso talvez nós façamos por meio de uma portaria, que ainda está em construção. Estamos ouvindo o que a sociedade civil tem nos falado. Estamos em discussão com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Ainda não dá para adiantar. Queremos ter essa portaria ainda este ano.
Está também no estatuto a garantia da liberdade religiosa. A população negra é que mais sofre com a intolerância religiosa.
A violência religiosa tem nos preocupado muito e não só a Seppir, mas o governo federal como um todo. O que temos feito, além das denúncias que são apresentadas à nossa Ouvidoria, é ouvir os segmentos, os movimentos sociais. Estamos neste momento pensando em uma ação mais global do governo para podermos trabalhar em uma conscientização da população para uma superação da violência e inclusive na informação para as vítimas de quais são os caminhos jurídicos que podem seguir quando sofrerem essa violência.
Alguns movimentos pedem reforma do estatuto. O argumento é que, na tramitação, trechos importantes foram retirados. A Seppir pretende propor alguma mudança?
Não está na pauta da Seppir, no atual momento, fazer alguma alteração no Estatuto da Igualdade Racial. Eu acho que o processo pelo qual o estatuto passou é um processo que existe na sociedade democrática de negociação e conflito. O estatuto passou por mudanças, mas essas mudanças de forma alguma invalidaram o teor e o alcance dele.
Mariana Tokarnia, da Agência Brasil - 20/7/2015