São Paulo – O governo federal lançou, em setembro de 2016, o Programa de Parceria do Investimento (PPI), que regulamenta o processo de concessões e privatizações para os próximos anos. Em março de 2017, foram anunciados mais 55 projetos do PPI, entre eles a desestatização de 14 empresas estaduais de saneamento.
Está prevista para o primeiro semestre de 2018 a entrega, ao capital privado, das companhias de água e esgoto do Acre (Depasa), Amapá (Caesa), Santa Catarina (Casan), Alagoas (Casal), Ceará (Cagece), Maranhão (Caema), Paraíba, (Cagepa), Pernambuco (Compesa), Rio Grande do Norte (Caern) e Sergipe (Deso). Já Embasa (Bahia), Agespisa (Piauí), ATS (Tocantis), Cosama (Amazonas), Cedae (Rio de Janeiro), Cosanpa (Pará) e Caerd (Rondônia) estão previstas para serem privatizadas no segundo semestre de 2018.
Importante mencionar que alguns governadores, como por exemplo Rui Costa (Bahia) e Camilo Santana (Ceará), ambos do PT, já manifestaram contrariedade em privatizar as empresas estaduais de saneamento, ainda que elas estejam listadas no programa.
Na contramão – Essa entrega das empresas públicasao capital privado pelo governo federal está na contramão do que ocorre em centenas de cidades ao redor do mundo. Estudo elaborado por 11 organizações não governamentais descobriu ao menos 835 casos de remuncipalização ou reestatização de serviços de água e esgoto em mais de 1.600 localidades de 45 países. Dentre os exemplos estão capitais como Paris, Berlim, Barcelona, Budapeste, Viena e Buenos Aires.
Abusos do setor privado e violações trabalhistas; encarecimento dos serviços prestados e um desejo da população pelo controle de recursos essenciais são enumerados no estudo como fatores para a retomada desses serviços para as mãos do Estado.
“Trazer serviços públicos locais para o controle público é uma questão democrática importante, especialmente serviços essenciais como energia ou água. Significa maior transparência e melhor supervisão do cidadão. No contexto das mudanças climáticas, pode contribuir para liderar nossas cidades em direção à eficiência energética, ao desenvolvimento das energias renováveis, à conservação de nossos recursos naturais e ao direito à água”, declarou Célia Blauel, vice-prefeita de Paris e presidente da Eau de Paris, uma das ONGs envolvidas no estudo.
“Estamos vendo nesses países desenvolvidos a retomada dos serviços de saneamento que foram privatizados e que não deu certo. Mas as empresas sabem que tem como negociar com governos fracos e corruptos, como o nosso, a preço vil”, afirma o estudioso sobre recursos hídricos, Renato Tagnin.
A portas fechadas na Suíça – No dia 24 de janeiro, em meio ao Fórum Econômico Mundial – evento que reúne anualmente a elite financeira global em Davos, nos Alpes Suíços –, o presidente Michel Temer reuniu-se com representantes de corporações que têm a água como ativo essencial, como James Quincey, da Coca Cola, e Carlos Brito, presidente global da Ambev. Temer também se encontrou, a portas fechadas, com o chairman da Nestlé, Paul Bulcke, segundo noticiou a Folha de S.Paulo.
A suíça Nestlé – com marcas como Acqua Panna, Nestlé Pureza Vital, Perrier, Petrópolis, São Pellegrino e São Lourenço – é a maior multinacional de água engarrafada do mundo, detendo jazidas aquíferas em diversos países, dentre eles o Brasil. A corporação é dona, por exemplo, de fontes no município mineiro de São Lourenço, onde trava, há anos, batalha contra a população e o Ministério Público devido ao controle e o esgotamento de poços na região.
“Quem detém o controle desses recursos, detém o poder e pode aumentar os valores criando a escassez. Há várias formas de criar escassez, como ocupar terras onde chove bastante e onde os aquíferos estão disponíveis, e também ocupando pontos chave de gestão, como a infraestrutura de saneamento”, resume Renato Tagnin.
O documentário Ouro Azul - As Guerras Munidas pela Água (2008) denuncia as investidas das grandes corporações mundiais pelo controle de jazidas de água.
Bancos na parada – Segundo a Folha de S.Paulo, estiveram reunidos com Temer e o CEO da Nestlé, na Suíça, os presidentes do Itaú, Candido Bracher, e do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco.
Ainda que não estivesse presente nessa reunião privada, outro grande banqueiro brasileiro, o presidente do Santander Brasil, Sérgio Rial, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o interesse na privatização dos serviços de saneamento do país. “E temos ainda a resistência de alguns estados e municípios a privatizar [empresas de saneamento]”, observou Rial.
Ligando os pontos, não é difícil chegar a uma conclusão. “É muito preocupante esse movimento de entrega oferecida, e como toda entrega oferecida, você entra para vender e os caras colocam o preço que quiserem. E, no nosso caso, estamos perdendo o conceito de nação”, denuncia Tagnin.
“Estamos vendo um cerco à nação partindo dessas grandes corporações conhecidíssimas pela sua ação predatória e que têm no exterior uma longa folha corrida de abusos e pressão contra as populações locais onde se estabelecem. Privatizar significa privar algo de alguém e tornar privativo. É assim que este movimento deve ser lido”, conclui o especialista.