A "reforma" da Previdência do presidente Jair Bolsonaro e do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, foi classificada como "afronta aos brasileiros" e "uma falácia" que não vai contribuir para o crescimento econômico, como alardeiam economistas do governo e da imprensa tradicional. Representa ainda a "destruição do sistema de Seguridade Social", que prejudica ainda mais os menos favorecidos de sempre: negros e negras, os que mais sofrem com o desemprego e a informalidade. A avaliação é dos participantes do Encontro de Economistas em Defesa da Previdência Social, realizado na terça-feira 14, em Brasília.
A reportagem é da Rede Brasil Atual.
O evento foi uma iniciativa da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência. Antes do debate, foi lançado manifesto assinado por dezenas de economistas, encabeçado por Maria da Conceição Tavares, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Luiz Gonzaga Belluzzo.
O coordenador da frente parlamentar, senador Paulo Paim (PT-RS), diz que os esforços são para mostrar que as mudanças propostas pelo governo sequer são necessárias, já que o déficit registrado nos últimos anos se deve à queda na arrecadação por conta da alta do desemprego. "Se fizerem o encontro de contas, não apenas nos últimos dois anos, não há déficit. Todos os economistas dizem que a Previdência está quebrada, falida, e que não vai dar certo nunca. Esse manifesto diz exatamente o contrário", afirmou.
Para a professora de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil, a proposta, ao contrário do que diz o discurso oficial, "elegeu a injustiça como lema". "Não existe possibilidade dessa reforma ser neutra, nem de promover um sacrifício igual para todos. O ajuste fiscal, no Brasil, é para pobres, é opressão fiscal. A classe média parece ainda não ter entendido completamente o que essa reforma vai fazer com suas vidas e uma parte insiste em apoiar. Os mais ricos permanecerão intocáveis pelo ajuste fiscal."
Ela diz que os defensores da reforma usam o envelhecimento da população para causar terror e insegurança. "É verdade que estamos numa sociedade que está envelhecendo cada vez mais. Mas isso não significa que devemos cuidar agora do abreviamento da vida das pessoas para fazer o equilíbrio fiscal. Há outras alternativas, e os economistas sabem disso." Ela propôs, por exemplo, um programa público de combate ao desemprego, que teria como consequência direta o aumento da arrecadação da Previdência.
O professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Pedro Rossi atacou a "falácia" da "reforma" como pré-condição para a retomada do crescimento econômico, alardeada por dez entre dez "especialistas" na imprensa tradicional. Sem pluralidade no debate, falta alguém para dizer o óbvio: que a proposta de reforma é "contracionista".
"Qualquer proposta de reforma que corta gastos, limita as transferências e aumenta impostos, é contracionista. Reduz, portanto, o crescimento econômico, no curto, médio e longo prazo. A reforma não vai gerar o crescimento esperado. Esse discurso é baseado em mitos, que são facilmente desmontados", afirmou Rossi.
Um dos mitos, segundo ele, é que a reforma aumentaria a confiança do mercado. "O empresário não investe porque o governo cortou gastos. O empresário investe quando tem demanda. Isso significa que o governo não pode cortar gastos? É claro que não. Depende do momento. Num momento de crise, quando os empresários não investem e a população não consome, é quando o governo deve gastar. Se cortar gastos, reforça a crise. É o que estamos vivendo nesse ciclo vicioso da austeridade."
O economista Eduardo Moreira, que já atuou no mercado financeiro, lembra que a lógica do governo com a reforma é fazer o "enxugamento da dívida pública". O problema, segundo ele, é que o pagamento da dívida tem um "multiplicador" (quanto o capital investido acumula de retorno) abaixo de um – ou 0,71, segundo o padrão adotado pelos economistas. "O problema é que quando a gente enxuga, a gente para de crescer. Em nenhum lugar da Constituição diz que essa dívida financeira é mais importante que a dívida em saúde, moradia e educação que temos com cada cidadão brasileiro."
Segundo a economista da consultoria Necton Camila de Caso, a reforma do governo Bolsonaro é racista, "porque prejudica principalmente trabalhadores negros que sofrem muito mais com o desemprego, precarização e informalidade no mercado de trabalho." Com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, do IBGE), ela citou que boa parte da população negra vive na informalidade, e esse grupo responde por quase 60% dos desocupados do país, o que quer dizer que terão muito mais dificuldade de cumprir os critérios de tempo de contribuição definidos na dita "reforma".
Por fim, os economistas da Unicamp Eduardo Fagnani e Guilherme Mello também ressaltaram que as mudanças nas aposentadorias delineadas por Guedes são "mais uma peça" no processo de destruição do Estado Brasileiro e "o maior ataque contra o povo brasileiro em toda a nossa história".
Confira a íntegra do debate da Frente em Defesa da Previdência
Manifesto dos Economistas em defesa da Previdência Social, contra a PEC/6
Nós, entidades e economistas de diversas formações teóricas e políticas e diferentes especialidades, viemos por meio desse manifesto defender a Previdência Social e seu regime de repartição, nos posicionar contrários à Proposta de Emenda Constitucional 6/2019 (PEC 6) e demandar dos meios de comunicação mais pluralidade no debate público/midiático sobre o tema em questão.
A Previdência Social e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) atendem a dezenas de milhões de brasileiros e tornam a pobreza na velhice um problema residual no Brasil. Seu financiamento combina contribuições de trabalhadores, empresas e do governo que estão sujeitas aos ciclos econômicos, às mudanças demográficas e às transformações no mercado de trabalho. Nesse sentido, é natural que a previdência passe por ajustes periódicos que adequem os benefícios, recomponham e repactuem novas fontes de financiamentos, corrijam inadequações, injustiças e privilégios.
No entanto, a atual PEC 6 não propõe reformar a previdência social de forma a preservar a sua natureza como um regime de repartição, tampouco garante a sua sustentabilidade fiscal. O regime de capitalização proposto no artigo 201-A da PEC 6, a ser especificado posteriormente por meio de uma Lei Complementar, aponta para a adoção de outro regime de previdência em substituição (e não complementariedade) ao atual regime solidário de repartição, o que pode resultar em um elevado custo social (como aponta a experiência internacional) além de um alto custo fiscal de transição. Para avaliação de uma proposta dessa natureza, consideramos absolutamente necessária a especificação do regime de capitalização e uma ampla avaliação de impacto em termos do seu custo social e fiscal. Nesse contexto, na ausência da especificação desse novo regime de previdência e da disponibilização dos dados acerca de eventuais estudos de impacto dessa medida, a capitalização se apresenta como um cheque em branco com altíssimo risco social e fiscal para a sociedade brasileira.
Também nos causa preocupação a “desconstitucionalização” de aspectos do nosso sistema de proteção social uma vez que a PEC 6 possibilita a alteração de regras da Seguridade Social e de seu orçamento sem a necessidade de aprovação de Emendas Constitucionais, mas por meio de leis complementares.
Além disso, é preciso reavaliar as mudanças de regras que prejudicam especialmente a população mais pobre como, por exemplo, a redução no valor do Benefício de Prestação Continuada, as alterações na aposentadoria rural e o aumento do tempo de contribuição mínimo para aposentadorias por idade, fato que irá prejudicar especialmente as mulheres, dado que estão sujeitas a uma maior rotatividade no mercado de trabalho e menor tempo de contribuição.
Por fim, consideramos que a mídia deve proporcionar uma cobertura imparcial sobre o tema da Reforma da Previdência e contemplar economistas com opiniões diferentes, o que não tem sido observado em alguns dos principais veículos de comunicação brasileiros. As questões presentes neste manifesto, assim como outras críticas possíveis ao atual projeto do governo, não têm sido devidamente contempladas no debate público promovido pelos principais meios de comunicação brasileiros, com importantes exceções, apesar de contarem com a concordância de um grande numero de economistas. O debate democrático acerca de um tema tão sensível para o futuro do país exige uma abertura maior ao dialogo e ao contraditório por parte das instituições que promovem o debate público no Brasil.