São Paulo – As 19 empresas de ônibus concessionárias do transporte coletivo na capital paulista respondem juntas a 8.111 processos no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. O número corresponde a aproximadamente 15% do total de seus 54 mil funcionários. Entre os motivos, contestação de dispensas por justa causa, carga horária excessiva, horas extras pagas a menos, entre outros. Motoristas e cobradores ouvidos pela RBA durante a paralisação ocorrida entre os dias 20 e 22 de maio destacaram que a insatisfação com as condições de trabalho era a maior motivação para aderirem ao movimento.
A empresa mais acionada é a Viação Itaim Paulista (VIP), que responde a 2.911 ações na primeira instância. No Tribunal Superior do Trabalho (TST), última instância, há outros 35 processos. A empresa presta serviço nas regiões nordeste (área 3), sul (área 6) e sudoeste (área 7) da capital, como participante dos consórcios Plus, Unisul e Sete.
As empresas Viação Campo Belo e Via Sul também se destacam no número de processos – 730 e 701, respectivamente. Depois vêm as viações Himalaia e Ambiental (zona leste) – que aparecem sob o mesmo número de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) – com 529 ações; a Santa Brígida (zona noroeste) com 467, e a Sambaíba (zona norte) com 326.
A empresa com menos questionamentos é a Viação Novo Horizonte, com apenas 11. No entanto, a empresa mudou de nome para Viação Itaquera Brasil, em 2011, e mais recentemente para Express Transportes Urbanos, após a quase falência da Itaquera – o corpo diretivo, porém, permanece praticamente inalterado. A situação dificulta a pesquisa de ações no sites do TRT e do TST.
Além dos processos em primeira instância, há outros 163 movidos contra as 18 empresas tramitando no TST. Neste, a VIP mantém o topo como mais reclamada, com 35 ações. É seguida pela Viação Sambaíba com 25 processos e pela Santa Brígida (Noroeste), com 20.
A capital paulista é dividida em oito regiões, onde funcionam os consórcios – associação de empresas para prestação do serviço de transporte em uma região. Cada uma dessas regiões tem um contrato com a prefeitura da capital para prestação dos serviços de transporte coletivo do sistema estrutural, que liga os terminais regionais a regiões centrais da cidade.
Os consórcios também estão sendo processados por ex-funcionários. São 431 ações contra os oito grupos que atuam em São Paulo. Também há outros dez tramitando na última instância. O Consórcio Sete, uma das áreas onde atua a VIP, é o que sofre maior número de ações: 111. Em seguida vêm os Consórcios Leste 4 (99), Plus (89) e Unisul (87).
Os dados levantados junto às consultas processuais dos órgãos da Justiça do Trabalho endossam a versão dada por motoristas, cobradores e fiscais sobre o que levou a categoria, em toda a cidade, a aderir a uma greve iniciada pelos trabalhadores da Viação Santa Brígida, que opera na zona noroeste da cidade.
A paralisação teve como estopim a discordância entre trabalhadores e diretoria do sindicato da categoria, o Sindmotoristas, sobre o reajuste salarial. A entidade convocou para o dia 20 de maio assembleia para apreciar a proposta de aumento salarial de 10% acertada com os empresários, mas acabou realizando a reunião no dia 19, com 4 mil trabalhadores que haviam sido convocados para uma passeata.
A assembleia realizada no dia anterior ao divulgado causou revolta entre os trabalhadores, mas, de acordo com motoristas e cobradores ouvidos pela RBA durante os dias de paralisação, outros motivos alimentam a insatisfação da categoria, como condições precárias de trabalho, assédio moral e estresse.
"Nossa carga horária é de sete horas diárias, mas é raro encontrar um trabalhador que faça menos que dez horas diárias. A gente sai da garagem sabendo que vai trabalhar mais do que o contrato define”, conta José (nome fictício), motorista da Viação Sambaíba, que opera na zona norte da capital.
Nos finais de semana, quando parte dos profissionais tem folga, a situação dos que trabalham fica ainda mais complicada. "Os coletivos não podem parar, então temos que cobrir os períodos de quem não está trabalhando", explica Luiz (nome fictício), cobrador da Viação Gato Preto, operadora da zona oeste da cidade. Assim, muitos chegam a fazer 15 horas de trabalho direto, denuncia o funcionário.
A hora extra conta com a concordância dos trabalhadores pela renda maior no final do mês, mas não é computada no holerite. "Todo mundo aqui conhece a 'fominha', a renda que é paga por fora. Do holerite, só consta o salário mensal mesmo", diz José. Como motoristas e cobradores não batem ponto, é difícil provar o trabalho além do expediente e, segundo Luiz, brigas nas garagens são comuns porque motoristas e cobradores acreditam que recebem menos do que deveriam.
Além disso, os trabalhadores reclamam não ser possível obter acordos para demissão. "Das empresas a gente só sai se pedir ou se for demitido por justa causa. Mesmo que não tenha motivo para isso. Daí tem de procurar a Justiça", completa José. Coincidentemente, na quinta 29, motoristas e cobradores da Viação Sambaíba denunciaram que a empresa estava demitindo, por justa causa, supostos líderes da paralisação.
O superintendente regional do Trabalho em São Paulo, Luiz Antônio de Medeiros, que mediou o diálogo entre os sindicatos da categoria e patronal e os trabalhadores rebelados, confirma a situação denunciada pelos trabalhadores. “É um tipo de trabalho precário. Há um excesso de carga horária, problemas no descanso do trabalhador, não há horário de almoço. Tem gente que esquenta marmita sobre o motor do veículo”, afirmou. Para ele, as empresas aproveitam a condição de serviço essencial do transporte público para manter as condições de trabalho desfavoráveis aos trabalhadores.
Para Medeiros, o que existe é um “modus vivendi” entre trabalhadores, sindicato e empresas. “A justiça é muito lenta. Em boa parte das vezes o trabalhador acaba por fazer um acordo, induzido pela Justiça, para evitar que o processo se arraste ao longo dos anos. As empresas sabem disso e acabam mantendo a situação sem melhorias, porque é vantajoso”, avaliou.
Por essa razão, o superintendente está convencido de que o movimento grevista foi espontâneo e considera natural que o trabalhador abra processo contra a empresa posteriormente. “É por isso que essas greves estouram assim. Não era uma briga de diretoria. Foram greves reais e espontâneas, movidas pela insatisfação”, concluiu.
Roberto (nome fictício), motorista da Viação VIP, reforça o argumento de Medeiros. "Nossa frustração com essas condições foi o que fez a maior parte dos trabalhadores aderir ao movimento iniciado na Viação Santa Brígida. São muitos anos nessas condições e o acordo de reajuste deste ano foi apenas um estopim. Muitos aqui botaram fé na nova diretoria e ficaram revoltados com a aprovação do acordo sem consentimento da maioria, mas as principais questões são anteriores."
Anteriores são, por exemplo, as avarias nos veículos, que também entram na conta dos trabalhadores, assim como as ocorrências de assalto. "Se um cara bater na traseira do veiculo e conseguir fugir sem que eu possa identificá-lo, tenho de pagar o conserto", denuncia o motorista da Viação VIP, na zona sul da cidade. Ele afirma que os trabalhadores costumam revisar todo o coletivo antes de sair da garagem para evitar surpresas.
O mesmo ocorre com os cobradores. "Se meu cobrador for assaltado, o valor vai ser descontado do salário dele. Não adianta fazer boletim de ocorrência", conta Roberto. Com a criação do Bilhete Único, a situação melhorou, mas o risco ainda é frequente.
O horário de almoço dos profissionais também é curto. São apenas 30 minutos para comer, o que coloca a categoria em outra situação difícil. “Exceto pelos que operam em terminais, temos sérios problemas para ir ao banheiro ou almoçar. Muitos pontos finais estão localizados em áreas mais remotas. Quando tem um boteco, a gente se vira”, relata Roberto. Ele, que está no sistema há 13 anos, diz que todas essas situações são comuns.
Boa parte dos rodoviários de São Paulo é levada ao trabalho por "caronas" da própria empresa. No entanto, se chegarem atrasados – mesmo vindo na carona – não podem trabalhar. Ficam à disposição, aguardando ser enviados para outra linha. Assim, passam o dia todo no trabalho, mas não recebem pelo período parado. "Só vai passar a contar quando eu sair de algum ponto final para render outro trabalhador", comenta Roberto. Essa perda de horário faz grande diferença no final do mês.
Aliadas ao trânsito complicado de São Paulo e a problemas eventuais com passageiros, essas condições levam a categoria ao topo do ranking de estresse ocupacional no país, perdendo apenas para policiais e seguranças privados.
O estudo "Condições de trabalho e saúde de motoristas de transporte coletivo urbano", realizado pelos especialistas em psicologia Márcia Battiston (Centro Universitário Barriga Verde), Roberto Moraes Cruz (Universidade Federal de Santa Catarina) e Maria Helena Hoffmann (Universidade do Vale do Itajaí), constatou as consequências físicas das condições de trabalho dos motoristas e cobradores, em geral, como dores na cabeça e nas pernas, problemas auditivos e distúrbios emocionais e psíquicos, como estresse, irritabilidade e fadiga.
Segundo a pesquisa, os motoristas estão submetidos a uma série de pressões externas aos veículos em que trabalham, entre as quais destacam-se as exigências do trânsito, o respeito às leis de trânsito, os limites de seu trabalho – por exemplo, nível do tráfego, semáforos, congestionamentos, acidentes –, além de condições adversas como o clima e o estado de conservação da pista. Além dessas, eles ainda sofrem com as condições ergonômicas do veículo: posição do motor e precariedade mecânica, além do ruído e das vibrações.
Em São Paulo, a transferência do motor para a parte traseira do veículo melhorou, em parte, as condições de trabalho, já que reduziu a incidência de ruído e calor. Assim como a implementação das faixas exclusivas de ônibus, que reduzem a parada em congestionamentos.
Mesmo assim, um levantamento sobre os melhores e piores empregos no Brasil, realizado pelo site de vagas Adzuna.com, colocou a profissão de motorista de ônibus no topo como a pior. O estresse, as más condições de trabalho, a baixa remuneração e a falta de perspectiva de progredir em uma carreira são os principais problemas.
O Sindimotoristas informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que está formando comissões para discutir os problemas que afetam a categoria e vai buscar melhorias nas condições de trabalho, ressaltando que a nova diretoria tomou posse há apenas seis meses.
O Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss) informou, por meio de nota, que sua função "é cuidar dos interesses do setor, buscando a melhoria e o desenvolvimento dos serviços, bem como a defesa de políticas públicas que priorizem o transporte coletivo sobre o individual". A entidade afirma que trata dos problemas que são comuns às empresas e não se envolve nas relações diretas entre patrões e empregados. E não comentou o número de processos.
A reportagem procurou pelas empresas, mas foi orientada a buscar pelo sindicato patronal, que seria o único porta voz das concessionárias.
Em entrevista à RBA, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), reafirmou que a gestão não vai interferir nas questões trabalhistas, e que o papel da prefeitura é gerir o sistema e garantir o atendimento à população. “Os motoristas e cobradores não são funcionários da prefeitura, eles são funcionários das concessionarias de transporte público da cidade. Obviamente, por se tratar de um serviço essencial, a prefeitura acompanha para verificar se está havendo diálogo, se estão chegando a um bom termo, mas sempre como um terceiro observador, sem nos imiscuir nos assuntos internos aos sindicatos.”
Rodrigo Gomes, da Rede Brasil Atual - 3/6/2014
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Motoristas e cobradores relatam condições de trabalho abusivas e necessidade de recorrer à Justiça para reaver direitos negados como justificativa para adesão à greve que parou São Paulo há duas semanas
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