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Povo se tornou protagonista na Venezuela

Linha fina
Para estudiosos da América Latina, 14 anos de Chávez significaram redistribuição de riquezas, no país antes marcado por desigualdade social e subserviência ao FMI
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São Paulo – A morte do presidente venezuelano Hugo Chávez, em 5 de março, reavivou o tom com que a grande mídia brasileira sempre retratou o líder latino-americano. “Populista”, “ditador” e “autoritarismo” foram as palavras mais usadas para caracterizar os 14 anos (1999 a 2013) em que Chávez presidiu o país, graças aos votos da maioria da população. Mas a opinião de alguns especialistas no assunto difere dessa visão.

“Chávez não pode ser chamado de ditador, pois chegou ao poder após quatro eleições democráticas, que foram inclusive acompanhadas e consideradas legítimas por organismos internacionais como a OEA (Organização dos Estados Americanos)”, argumenta o cientista político com doutorado em Relações Internacionais, Moisés Marques, coordenador de pesquisa do Centro 28 de Agosto, do Sindicato.

Após as eleições de 1999, Chávez foi reeleito em 2000, com 55% dos votos; em 2006, com 62,9% e em 2012, com 54%. Além disso, sobreviveu à tentativa de golpe da oposição em 2002 – foi afastado por dois dias e voltou ao posto com o apoio popular – e a um referendo revogatório, proposto pelas forças contrárias a seu governo, com 58,25% dos votos por sua permanência no poder.

“Ele também não pode ser chamado de populista. O populismo é um fenômeno datado, que se situa entre as décadas de 1940 e 1960. Já o período de Chávez na Venezuela é difícil de rotular, acredito que a história vai dizer o que foi e acho que será uma avaliação positiva, apesar dos percalços”, acrescenta.

Para Marques, Chávez talvez tenha pecado por excesso de personalismo, mas, ressalta, “a redução da desigualdade, a melhoria educacional e na saúde são fatos no país. Por outro lado, o modelo anterior a Chávez era um modelo de perpetuação de elites.”

Venezuela pré-Chávez – Segundo o sociólogo Wagner Iglecias, o contexto no qual Chávez emergiu como liderança nacional era marcado pela desigualdade social. “Apesar de ser um dos mais importantes produtores e exportadores de petróleo do mundo, a Venezuela, por meio de suas elites tradicionais, se construiu ao longo do século XX como uma sociedade profundamente desigual e com um elevadíssimo percentual de pessoas vivendo na pobreza e na miséria.”

> A íntegra da entrevista com Wagner Iglecias

Professor doutor de pós-graduação em Integração da América Latina da USP, Iglecias resume: “Em termos bastante práticos, Chávez colocou a questão social no centro da agenda pública daquele país.”

Níveis altos de pobreza, obediência servil aos Estados Unidos e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e alternância dos grupos de elite no poder, segundo o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Igor Fuser, definem o quadro que precedeu a sublevação militar liderada por Chávez em 1992, e que resultou em sua detenção por dois anos.

> A íntegra da entrevista com Igor Fuser

“O presidente na época, Carlos Andrés Pérez, assinou acordo com o FMI que tinha como ponto principal o aumento dos preços dos transportes e dos produtos de primeira necessidade. Isso provocou uma revolta popular (conhecida como Caracazo), em 1989, que foi esmagada em um banho de sangue, com mais de 3 mil mortes. Esse era o contexto em que Chávez se sublevou contra o governo, à frente de um grupo de militares. Uma pesquisa de opinião pública, feita uma semana depois dessa rebelião, apontou que 80% dos venezuelanos queria a saída de Carlos Andrés Pérez”, destaca Fuser.

A Venezuela também estava longe de ser uma democracia. “Na realidade, a ascensão de Chávez como líder popular ocorre justamente a partir do naufrágio do regime político existente entre as décadas de 1960 e 1980, quando dois partidos, a Ação Democrática e a Copei, monopolizam o poder, por meio do Pacto de Punto Fijo.” Por meio desse acordo, explica o professor, os dois principais partidos das elites e seus aliados partilhavam  todos os cargos importantes do governo, independentemente do resultado das eleições. “Era uma democracia de fachada”, afirma Fuser.

Popularidade – O contraste entre a Venezuela comandada pelas elites e o país com os avanços dos últimos anos explica, de acordo com Fuser, a popularidade do ex-presidente. “O regime chavista procurou reconciliar o Estado com a sociedade, por meio de um gigantesco projeto de redistribuição da riqueza e do poder. Pela primeira vez, o governo e suas instituições colocaram em primeiro lugar as necessidades da população e se abriram para uma verdadeira participação política da maioria dos venezuelanos.”

Como consequência, diz ele, a Venezuela avançou: “Nesses 14 anos, o país eliminou o analfabetismo e viabilizou o acesso de milhões de jovens da classe trabalhadora ao ensino médio e à universidade. Também no campo da saúde, houve uma melhora radical. Milhões de famílias passaram a ter acesso à assistência médica de qualidade, próxima aos seus locais de moradia. Mais de 300 mil moradias, destinadas à população pobre, foram construídas nos últimos dois anos, o que é um número extraordinário num país de apenas 30 milhões de habitantes.”

Nos anos 2000, acrescenta Wagner Iglecias, “a Venezuela foi o país que mais avançou em termos de IDH (melhoria dos indicadores de educação, saúde e renda) e Índice de Gini (diminuição da desigualdade social) na América Latina.” Isso porque, explica, “o modelo bolivariano repartiu melhor, entre os venezuelanos, os recursos obtidos com a exportação do petróleo, antes quase que exclusivamente em mãos de uma pequena elite, e o fez na forma da expansão de políticas sociais voltadas aos mais pobres.”

Continuidade – A morte de Chávez foi comemorada pela oposição como o fim de uma era, mas os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que muito provavelmente seu partido, o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) se manterá no poder. “Embora dependesse fortemente da figura pessoal do líder, o projeto tem também um outro ator político muito relevante: as camadas pobres, que com Chávez não apenas passaram a estar no centro da agenda social do país mas também tornaram-se, definitivamente, um ator político relevante naquele cenário. Ninguém mais, daqui por diante, poderá governar a Venezuela sem ter isto em conta”, afirma Iglecias.

“As mudanças que ocorreram até agora na Venezuela não se devem apenas à vontade de Chávez, mas à mobilização de milhares ou até milhões de militantes, que apoiaram a revolução bolivariana e lutaram em sua defesa em momentos críticos. Nesse processo, surgiram novas lideranças em todos os níveis, local, regional e nacional. A maior parte desses militantes e dessas lideranças está agrupada no PSUV e em todo esse imenso bloco político existe um consenso em apoiar a liderança de Nicolás Maduro (o vice), indicado por Chávez para substitui-lo no comando do processo revolucionário. Maduro conta hoje com o apoio unânime dos partidários de Chávez e já desponta como o grande favorito para as próximas eleições”, ressalta Fuser.

Segundo Moisés Marques, apesar de o chavismo não ter conseguido, em 14 anos, dinamizar a economia da Venezuela, hoje ainda muito dependente do petróleo, os avanços promovidos por Chávez e seus aliados se manterão: “Acredito que quem ganhar não vai poder acabar com as conquistas do chavismo. O novo presidente terá que governar com as mesmas diretrizes. Os governos de Chávez colocaram o povo venezuelano no protagonismo da política e ele aprendeu a ser protagonista.”

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Andréa Ponte Souza - 15/3/2013

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