São Paulo – Entidades de defesa do consumidor e o Ministério Público do Estado de São Paulo enviaram na quinta 10 uma carta aberta ao Senado repudiando a aprovação de um artigo incluído na Medida Provisória 627. Embora a medida tenha como objeto principal alterações em parte da legislação tributária, um artigo nela incluído limita drasticamente o valor e a incidência de multas aplicadas em operadoras de planos de saúde que cometam irregularidades.
A emenda foi incluída no texto pelo relator da MP 627, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), líder de seu partido na Câmara. E propõe que os convênios paguem, no máximo, o valor de duas multas para cada 50 notificações de infração semelhantes.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Procon-SP, o Ministério Público, a Procons Brasil, a Associação Proteste e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) consideram que a medida representa um retrocesso para a proteção dos consumidores, em todo o país. "Na prática, estabelece um evidente estímulo às operadoras para que desrespeitem as normas às quais devem se submeter, dada a fragilidade das sanções que a elas poderão ser aplicadas, em cada violação que cometerem aos direitos dos consumidores", diz nota divulgada hoje pelas entidades.
Discretamente - Originada por uma emenda introduzida à Medida Provisória 627/2013, que altera a legislação tributária federal relativa ao Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas e Jurídicas, a alteração passou despercebida pela tramitação na Câmara.
No entanto, o artigo 101 do texto aprovado altera os artigos 25 e 27 da Lei 9.656, que rege o funcionamento dos planos de saúde no país. O parágrafo único do artigo 27 embute a limitação das multas aplicadas às operadoras por suas infrações e reincidências. Pelo critério ali estabelecido, o valor da multa será multiplicado por, no máximo 20 vezes. Para isso, o plano de saúde terá de cometer mil vezes a mesma irregularidade.
“A alteração prejudicará o consumidor e está em desacordo com os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, instituída pelo Código de Defesa do Consumidor e que prevê coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo", ressalta Joana Cruz, advogada do Idec.
Atualmente, as operadoras pagam multas que variam de R$ 5 mil a R$ 1 milhão por infração cometida multiplicada pelo número de ocorrências. No entanto, em 2013, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) somente recebeu 20,7% das multas aplicadas.
Com a alteração, se uma operadora foi multada 20 vezes em um semestre no valor de R$ 5 mil, em vez de pagar R$ 100 mil, ela pagará somente R$ 10 mil.
De acordo com dados da ANS, ocorreram 17.599 reclamações sobre 523 planos de saúde, entre agosto e dezembro de 2013. O número equivale a uma alta de 16% em comparação com o semestre anterior.
“Na prática, o artigo é um franco estímulo à violação das normas que regem os planos. Vai sair mais barato descumprir as normas e dificultará a cobrança por parte dos órgãos de defesa do consumidor”, avaliou o assessor chefe do Procon de São Paulo, André Lopes.
A ANS também teria sua atuação limitada, já que poderia notificar infrações, mas teria sua capacidade de sanção aos convênios reduzida. A proposta não altera a situação das multas já aplicadas, e seria válida somente a partir da publicação do texto, até 31 de dezembro deste ano.
A regra atualmente utilizada pela ANS para aplicação de multas já é complexa por considerar a gravidade da infração, o número de usuários atingidos, o número total de usuários do plano e a reincidência, entre outros itens. O critério é criticado por especialistas pelo fato de amenizar a penalização.
Segundo Lopes, a relação entre planos de saúde e usuários já não é boa. “Hoje os planos de saúde, embora não tenham o maior volume de reclamações, são um tema que preocupa muito a defesa do consumidor. Vemos, de forma corriqueira, negativas de cobertura e reduções da rede credenciada”, afirmou Lopes. A medida dificultará a cobrança por melhorias na saúde privada.
O assessor chefe do Procon encaminhará uma carta ao Senado reivindicando a retirada do item da MP 627. “Lamentamos a forma como o assunto foi conduzido. O texto nada tem a ver com planos de saúde.”
Escândalo - Para o professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a situação é escandalosa. “O setor tem crescido muito, mas isso não se reflete em qualidade. No momento em que mais precisamos de fiscalização surge uma proposta de anistia antecipada às infrações”, afirma.
Scheffer lembra que essa não é a única medida de “incentivo” aos convênios aprovada recentemente. “Desde o ano passado vêm se beneficiando os convênios médicos. Eles já se livraram da cobrança de PIS e Confins (relacionada ao trabalho e à seguridade social) e recentemente houve a indicação de um diretor para a ANS que é contra o ressarcimento do SUS (pelo atendimento de usuários de planos particulares)”, ressaltou. O indicado é o médico José Carlos de Souza Abrahão, presidente da Confederação Nacional de Saúde (CNS).
“Estamos com sinais trocados. Em vez de se ampliar a fiscalização está sendo concedido um pacote de facilidades para um setor que atende, e muito mal, a uma parcela pequena da população. Enquanto isso, o sistema público continua necessitando de maior investimento. Afinal, que sistema de saúde nós queremos?”, questiona Scheffer.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não respondeu ao pedido de entrevista. Após várias tentativas a reportagem também não foi atendida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Já a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) informou por meio de nota que não comenta sobre atos do Legislativo que ainda estão em tramitação, como no caso da Medida Provisória 627.
Tramitação - Em nota, o deputado federal Eduardo Cunha negou que seja o autor da emenda. Ele ressaltou que a medida será vetada, mas que num primeiro momento o governo aceitou a proposta. Do contrário, ele não a teria acolhido.
“Não há o menor sentido eu, que não sou o autor do conteúdo, ter de ficar explicando algo que não gerei. E mais, didaticamente falando, várias sugestões chegam aos relatores das medidas provisórias em geral e o procedimento é o mesmo, com os relatores repassando o texto ao governo para que ele opine e apresente suas ponderações. Concluído esse processo, o relator decide, em função da opinião do governo e do debate em torno no texto, se inclui ou não cada item”, diz na nota.
A reportagem consultar o rol de emendas apresentadas ao projeto, no portal da Câmara dos Deputados. Em nenhuma da 516 propostas de emenda apresentadas, com os respectivos nomes de seus autores, está o texto do artigo 101.
Segundo o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), isso ocorre – uma emenda sem autor – quando o próprio relator do projeto inclui a proposta. “É iniciativa do relator, sim. Ele pode até não ser o autor, mas só pode ter sido incluída por ele”, afirmou.
Na quarta 9, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) pediu que a emenda seja retirada da proposta. “Conclamo as senadoras e senadores a votar pela retirada do artigo. De outra forma, acredito, não haverá outra alternativa para a presidenta senão vetar esse artigo”, afirmou, segundo a Agência Senado. A MP 627 ainda não tem data para ser votada pela Casa.
Rodrigo Gomes, da Rede Brasil Atual - 10/4/2014
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MP e entidades criticam artigo de medida provisória que prevê duas penalidades a cada 50 infrações
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