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Comissão revela crimes da prefeitura na ditadura

Linha fina
Entre as violações apontadas no relatório final está o desaparecimento e ocultação de vítimas em cemitérios e valas clandestinas. Prefeito Haddad faz pedido de desculpas histórico
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Luciano Velleda, para a Rede Brasil Atual
16/12/2016


São Paulo – O pedido de desculpas pronunciado nessa quinta-feira 15 pelo prefeito Fernando Haddad em reconhecimento aos crimes cometidos pela Prefeitura de São Paulo durante a ditadura-civil militar marcou a cerimônia de entrega do relatório final da Comissão da Memória e Verdade do executivo municipal.

Ciente de seu gesto, Haddad leu pausadamente a histórica retratação: “Diante das revelações ora trazidas pela Comissão da Memória e Verdade, e na condição de representante máximo do poder executivo municipal, estendo, em nome da Prefeitura de São Paulo, o pedido oficial de desculpas às vítimas de violações de direitos humanos cometidas por seus agentes durante a ditadura militar ou para as quais tenha contribuído. Esse pedido de desculpas destina-se a todos aqueles e aquelas que deram suas vidas para o restabelecimento da democracia no Brasil, aos que foram perseguidos, presos, torturados, assassinados por ação direta ou indireta da municipalidade e aos que tiveram seus corpos ocultados em valas clandestinas em cemitérios públicos municipais. Dirige-se também a seus familiares, cuja luta incansável permitiu que pudéssemos avançar localmente na garantia do direito à memória, à verdade e à justiça. Destina-se ainda a todos os servidores e servidoras que sofreram com a ação, constrangimento, demissão ou exoneração por razões políticas, bem como aqueles que tiveram suprimido seu direito à livre manifestação em decorrência de decisões municipais, muitas das quais emitidas por dirigentes não eleitos pelo povo paulistano. Embora esse ato jamais possa reparar os danos imateriais imensuráveis causados, representa ainda assim um gesto simbólico no sentido de reconhecer as responsabilidades do Estado brasileiro, em todas as esferas, na repressão a seus opositores, e de caminhar rumo a uma cidade mais justa e democrática. Não esqueceremos”.

Mais de 50 anos depois do golpe, o pedido de desculpas feito por Fernando Haddad se refere ao período entre 1964 e 1988, época em que a cidade de São Paulo teve 10 prefeitos. Foram eles, na ordem: Prestes Maia (1961-1965), Faria Lima (1965-1969), Paulo Maluf (1969-1971), Figueiredo Ferraz (1971-1973), Miguel Colasuonno (1973-1975), Olavo Setubal (1975-1979), Reynaldo de Barros (1979-1982), Mário Covas Júnior (1983-1985) e Jânio Quadros (1986-1988).

No caso de Jânio Quadros, vencedor na primeira eleição municipal direta desde 1965, embora tenha governado no período pós-ditadura, a Comissão da Memória e Verdade aponta que seu governo foi "marcado pelo arbítrio e pela truculência, com políticas higienistas, perseguições a trabalhadores e criminalização dos movimentos populares".

Memória e Verdade - Após dois anos e três meses de atuação, com 14 audiências públicas, dezenas de oitivas e extensa pesquisa, o relatório da comissão sistematiza a participação da prefeitura na repressão. A principal revelação trata da atuação do executivo municipal no desaparecimento e ocultação das vítimas da repressão nos cemitérios da cidade e em valas clandestinas. Ao todo, 79 vítimas da ditadura foram sepultadas na capital paulista. “Muitas vezes o caixão era entregue à família lacrado e a cerimônia era acompanhada por agentes públicos”, afirmou Teresa Lajolo, presidenta da comissão. Até hoje, 17 pessoas desaparecidas na capital paulista não foram localizadas. A Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura descobriu que em 47 casos, as vítimas foram enterradas como indigentes, mesmo tendo documentos.

Clique aqui para ler o relatório

Teresa também destacou como resultado da comissão, a revelação da perseguição sofrida por funcionários públicos e que resultaram em demissões, exonerações e aposentadorias forçadas. “Desde 1964 uma série de atos e decretos foram feitos para inibir a ação de quem lutava contra a ditadura”, explicou, enfatizando que, a partir de 1970, a prefeitura estreitou a contribuição com os aparelhos da repressão, como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), principal centro de tortura na época da ditadura, instalado na rua Tutóia.  “O conhecimento do passado, aliado ao do presente, é fundamental para que as violações nunca mais se repitam e a democracia possa triunfar. Aqueles que não conhecem sua história estão fadados a repetir os mesmos erros”, afirmou Teresa Lajolo.

Para Felipe de Paula, secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o relatório da comissão simboliza a coragem dos grupos e familiares de vítimas que nunca desistiram do tema e sempre cobraram respostas do poder público, assim como a coragem "daqueles que lutaram e não puderam estar aqui", disse ele, com a voz embargada.

O secretário afirmou que o estudo tem ainda o mérito de ser atemporal, pois os desaparecimentos forçados e a violência do Estado contra a juventude, principalmente hoje o jovem negro e periférico, são temas do passado e do presente. "Queremos ter os rumos do país nas nossas mãos de maneira democrática. Estaremos na luta para que isso tudo não se repita jamais."

Recomendações - O relatório da Comissão da Memória e Verdade está dividido em seis capítulos, sendo o quarto dedicado exclusivamente às recomendações à Prefeitura de São Paulo. Segundo o documento, a prefeitura “deve ser responsabilizada pelas violações cometidas por seus agentes e envidar esforços no sentido de implementar programas e políticas públicas que contribuam para esclarecer e reparar os abusos cometidos entre 1964 e 1988, bem como impedir que se repitam”.

São 36 recomendações. Entre elas, a conclusão da identificação das ossadas encontradas na Vala Clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus; a realização de novas escavações no mesmo cemitério para checar a possibilidade de haver mais ossadas desaparecidas; a retificação das certidões de óbito de mortos e desaparecidos políticos; a formação em direitos humanos de agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM); a proibição de hospitais municipais receberam corpos já “inertes” entregues por agentes de segurança, o que falseia as estatísticas da letalidade policial e constrói o discurso de que o policial tentou socorrer a vítima, mas ela não resistiu; e cobrar o governo estadual a criação do Banco de Dados de Pessoas Desaparecidas.

O relatório faz ainda outras recomendações de caráter simbólico, como a instalação de marcas de memória em locais emblemáticos, como centros de tortura e logradouros onde houve vítimas da repressão; a transformação em “equipamento de memória” da antiga sede do DOI-CODI; a alteração de nomes de ruas e escolas que homenageiam agentes da ditadura, entre outras recomendações. “Estendemos esse apelo ao prefeito eleito João Doria e sua equipe. De esperança em esperança”, disse o jornalista Camilo Vannuchi, membro da comissão e sobrinho de Alexandre Vannuchi Leme, assassinado em 1973, nas dependências do DOI-CODI.

Pai de dois filhos pequenos, Camilo observou que gosta de contar histórias para eles dormirem e que costuma iniciar os relatos com o famoso “era uma vez”, clássica expressão introdutória de contos infantis. “Minha esperança é que possamos falar dos regimes de exceção como ‘era uma vez’, como um reino de maldades e sombras que não voltam mais”, concluiu.

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