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Política pública e educação contra o trabalho escravo

Linha fina
Comissão e Ministério Público fazem ofensiva para barrar mudanças conservadoras na legislação brasileira
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São Paulo - Prática ainda recorrente no Brasil, o trabalho escravo é um dos temas que, pode-se dizer, se tornou política de Estado, independentemente de partido. O combate sistemático a essa prática atravessou cinco mandatos, os dois de Fernando Henrique Cardoso, os dois de Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro de Dilma Rousseff, e se mantém. Desde 1995, quando foram criados, os grupos móveis de fiscalização foram responsáveis por quase 2 mil operações e pelo resgate de aproximadamente 50 mil trabalhadores em situações análogas às de escravidão. Mas se há uma ação efetiva de repressão a esse crime, existem também as reações para “flexibilizar” a ação pública, que tem sido apontada como modelo internacional.

O avanço conservador voltou também seus olhos para a legislação que rege o combate ao trabalho escravo no país, baseada no Artigo 149 do Código Penal, que define as situações em que se reduz alguém à condição análoga à de escravo. Uma lei de 2003 (10.803) passou a identificar “condições degradantes de trabalho” e “jornada exaustiva” como algumas dessas situações previstas no código. Um projeto em tramitação no Senado (PLS 432, de 2013), que trata da expropriação de propriedades (urbanas e rurais) onde se constata a prática de trabalho escravo – uma questão que adormecia nos gabinetes do Congresso –, retira justamente esses dois itens, o que é interpretado por ativistas, autoridades e procuradores como uma tentativa, possivelmente com dedos ruralistas, de retrocesso em uma legislação considerada avançada.

Esses grupos se organizaram e, no final de janeiro, lançaram a campanha Somos Livres, que prevê uma ofensiva no Congresso para barrar qualquer mudança no conceito de trabalho escravo. E contaram com um reforço internacional: o indiano Kailash Satyarthi, prêmio Nobel da Paz em 2014, conhecido pelo resgate de dezenas de milhares de crianças em seu país de situções de trabalho degradante. Ele veio ao Brasil para o lançamento da campanha e participou de atividade com estudantes, organizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Kailashi considera a educação “o direito humano fundamental”.

Dignidade humana - O indiano também fez referência às iniciativas brasileiras de combate ao trabalho escravo e às ações para alterar a lei. “A percepção sobre um mal, sobre um crime, é o começo da mudança e de uma compreensão mais profunda sobre esse mal”, afirmou, criticando os que exploram mão de obra para obter ganhos. “Mudanças na economia que afetam a dignidade humana vão contra o desenvolvimento e a civilização. O crescimento da economia não pode se basear na servidão humana. Fico contente de saber que a legislação no Brasil é uma das mais progressistas do mundo, que define o trabalho escravo em todos os seus aspectos.”

“Não é uma campanha contra o trabalho escravo, mas a favor da liberdade”, observa a procuradora Christiane Nogueira, do Ministério Público do Trabalho (MPT) em São Paulo, citando a poetisa Cecília Meireles (“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta”).

Ela acrescenta que isso acontece em um momento político importante, de risco de retrocesso, representado pela tentativa de mudança do conceito legal. E observa que o trabalho escravo contemporâneo tem outras características: “Não se restringe à violação da liberdade, mas da dignidade”. E tendo como situações mais comuns a jornada exaustiva e, principalmente, as condições degradantes de trabalho.

Com engajamento de artistas como Camila Pitanga (que preside a ONG Movimento Humanos Direitos) e Wagner Moura (“embaixador” da Organização Internacional do Trabalho), a campanha visa, também, a aumentar o nível de informação sobre o tema. “A sociedade sabe que existe trabalho escravo, mas o confunde com irregularidades trabalhistas simples”, afirma a procuradora.

Segundo pesquisa da Ipsos para a organização Repórter Brasil, divulgada no lançamento da campanha (www.somoslivres.org), 70% acreditam que ainda existe trabalho escravo, 17% não acreditam e 12% não souberam responder – outro 1% não respondeu. No geral, 27% disseram não saber do que se tratava, 24% citaram remuneração baixa e 19%, horas extras, situações comuns no mercado de trabalho, mas não relacionadas a escravidão. Só 8% falaram em condições degradantes e 1% em jornada exaustiva. Foram ouvidas 1.200 pessoas em 72 municípios.

Crime rentável - O trabalho escravo é um crime rentável, afirma o coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT no Brasil, Luiz Antonio Machado. Segundo a OIT, a “receita” mundial com essa prática atinge US$ 150 bilhões. “O que move o trabalho escravo é também a ganância, a busca por lucro incessante.”

Ainda de acordo com a organização, há 21 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado, sendo 1,8 milhão na América Latina e no Caribe. Ele observa que muitas entidades consideram “conservadoras” as estimativas oficiais.

Coordenada pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e pelo MPT, a campanha foi lançada em 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data homenageia os quatro servidores do Ministério do Trabalho assassinados em 2004, em Unaí (MG). No ano passado, mandantes e intermediários foram julgados e condenados a penas que vão a quase 100 anos de prisão, mas estão recorrendo em liberdade.

Além das operações de fiscalização, também se busca combater o problema em outras frentes. De acordo com levantamento do MPT em 19 estados, o número de ações civis públicas por trabalho escravo aumentou de 54, em 2012, para 95 no ano passado. Mas os desafios crescem na mesma medida, como a tentativa de mudar a lei, o crescimento de casos em áreas urbanas e o bloqueio, via judicial, da chamada “lista suja” divulgada pelo Ministério do Trabalho, com empregadores usuários de mão de obra em situações análogas às de escravidão.

Para o secretário especial de Direitos Humanos e presidente da Conatrae, Rogério Sottili, o desafio é justamente “manter o país como exemplo de combate ao trabalho escravo e de legislação avançada”. Ao mesmo tempo em que vê possibilidade de retrocesso, ele identifica muitos parlamentares comprometidos com a agenda dos direitos humanos – e, por extensão, com a democracia. Para Sottili, os meios de comunicação desempenham papel crucial nesse processo. Mas é preciso investir também em educação e formação. “As histórias são contadas pelos dominadores.”

“Conhecimento é poder”, diz o indiano Kailash, para quem “a busca pela liberdade motiva a história humana”. E é preciso insistir, lembra. “Desde a minha infância, eu me recuso a aceitar o pessimismo e a passividade.”


Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual - 22/2/2016
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