São Paulo – A última audiência pública sobre a proposta de revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), a chamada Lei de Zoneamento de São Paulo, realizada na quarta-feira 28, foi marcada por um auditório lotado acima da capacidade e pela rejeição quase absoluta à proposta da gestão do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB). De acordo com reportagem da RBA, dos 39 participantes que pediram a palavra, apenas um concordou com as mudanças propostas, que passam por descontos de 30% a 50% na outorga onerosa – compensação financeira paga por quem pretende construir além do limite básico –, redução da obrigação de cumprir as cotas de solidariedade e ambiental, permitir construção de prédios maiores em miolos de bairro e com mais garagens.
Nas falas dos participantes, a mais presente crítica foi a de que a gestão quer beneficiar o mercado imobiliário, já que não há como garantir, por exemplo, que os descontos concedidos na outorga onerosa vão se refletir em menores preços de moradias. Além disso, ao permitir maiores construções nos miolos dos bairros, mais garagens e desobrigar as cotas sociais e ambientais, o poder público deixa de agir como estruturador do desenvolvimento da cidade, deixando essa decisão para o mercado imobiliário.
A justificativa da prefeitura é que “as correções e ajustes na LPUOS são necessários para garantir uma melhor aplicação da lei”. Essa decisão foi tomada no âmbito da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento. O presidente do Conselho de Gestão da pasta, responsável por orientar a política da área, é Claudio Bernardes, que preside também o Conselho Consultivo do Secovi, o sindicato dos empresários do mercado imobiliário. A prefeitura já havia concordado com a proposta de revisão após um evento que teve a participação de Doria no Secovi.
O debate começou com quase duas horas de atraso. O teatro do Sesc Consolação, na Vila Buarque, região central, ficou lotado. A todo momento, os participantes entoavam em coro “não, não, não à revisão” e bandeiras em forma de prédios eram erguidas para encobrir a mesa de representantes da prefeitura, em alusão ao que vai acontecer com os bairros que sofrerem verticalização ostensiva.
A secretária municipal de Urbanismo e Licenciamento, Heloísa Proença, afirmou que a rejeição à proposta deve-se a sua não compreensão pela população. “Entendo que a proposta não está esclarecida. Queremos aumentar e não reduzir a arrecadação da outorga onerosa. O melhor ano foi em 2011, quando arrecadamos R$ 340 milhões, mas desde então vem caindo. Muitas adequações não podem ser feitas por decreto ou portaria, só por projeto de lei”, explicou.
Heloísa também reclamou que está havendo “desinformação”, inclusive, de organismos técnicos, como o Sindicato dos Arquitetos de São Paulo (Sasp) e o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). “Não procede que a proposta mexe no Plano Diretor. A lei prevê que o gabarito (tamanho dos prédios) e a outorga podem ser regulados por meio da Lei de Zoneamento. Também previa que instrumentos podiam ser revistos. Ainda falta muito para que a população fique esclarecida e precisa de um esforço nosso para isso. É um assunto árido.”
"Querem deformar a lei" – A verba arrecadada com a outorga tem como destino a implementação de infraestrutura urbana em regiões periféricas da cidade. O objetivo exposto pela gestão de Fernando Haddad (PT), responsável pela revisão do Plano Diretor Estratégico (2014) e da Lei de Zoneamento (2016), era "capturar" parte da valorização imobiliária que explodiu na cidade desde 2009 e revertê-la em benefício da população em geral. Cerca de 30% dos investimentos em infraestrutura da gestão Haddad utilizaram verba oriunda de outorga onerosa. A previsão é que gestão Doria vai deixar de arrecadar cerca de R$ 150 milhões por ano para favorecer o setor imobiliário.
“Querem deformar uma lei aprovada com ampla participação popular, dos técnicos da prefeitura e dos vereadores. Vai deixar a construção de moradias e o desenvolvimento da cidade em situação difícil, concentrando dinheiro nas mãos de quem sempre ganhou mais”, afirmou Antônio Pedro de Souza, da Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo (Facesp). “Por que o Secovi e o Sinduscon (sindicatos dos empresários do mercado imobiliário) não vêm aqui? Porque eles já foram ouvidos e contemplados”, completou.
Alexandre Bonfim, da União de Movimentos de Moradia, denunciou que os conselhos com participação da sociedade não foram consultados para elaboração da minuta. “Os conselhos de Habitação, de Política Urbana, não foram ouvidos. Não vamos aceitar que seja desmontada uma política que mal começou a ser implementada. Se a gestão não retirar, vamos ocupar prefeitura, câmara, o que for. Tem de ouvir o povo”, afirmou.
A militante do Movimento pela Regularização Fundiária e Urbanização (MRFU) de Parelheiros Simone Stefani cobrou que a gestão Doria invista esforços em regulamentar a legislação sobre regularização fundiária, em vez de tentar modificar a Lei de Zoneamento. “Vocês não conhecem a situação do povo pobre. Essa medida ainda vai acabar com a pouca verba que tem para melhorar a nossa situação. Mostram desenhos bonitos, mapa, mas pra nós isso não vai melhorar nada”, afirmou.
O presidente do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, Maurílio Chiaretti, defendeu que a gestão Doria deveria primeiro aplicar a lei existente e não buscar desvirtua-la. "Essa proposta altera todo o arcabouço legal do desenvolvimento urbano da cidade. E está jogando no lixo todo o debate sobre a cidade em que participaram 25 mil pessoas", disse. Para ele, por exemplo, o desconto da Outorga Onerosa não vai beneficiar os consumidores, mas sim "ser embolsado pelos proprietários de terras".
Mesmo quem apontou a necessidade de ajustes, se colocou contra a proposta da prefeitura. Para Adriana Levisky, da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura, “o arcabouço criado pelo Plano Diretor é um dos mais avançados do mundo e não se pode colocar em risco o que foi construído, promovendo uma ampla reforma da lei”. Ela apontou, porém, necessidade de ajustes no retrofit – sistema de reforma de prédios – para o qual não há estímulos financeiros, a transferência de potencial construtivo – quando se adquire o direito de construção maior em uma área e se aplica em outra –, por exemplo. “São pontos que dificultam a aplicação da lei”, concluiu.
No último dia 22, um grupo de 156 organizações encaminhou carta ao prefeito pedindo que ele retire a proposta de revisão da Lei de Zoneamento. Para as entidades, a proposta “atende a interesses privados, de um setor específico da cidade (mercado imobiliário), em detrimento ao interesse público”. Elas apontam riscos como queda de arrecadação, piora do trânsito em regiões já saturadas, extinção de bairros residenciais e mais exclusão da população de baixa renda da região central.