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Trabalho Escravo: governo rejeita pressão sobre PEC

Linha fina
Ministra diz que sociedade não vai admitir retrocesso na definição da escravidão contemporânea e afirma que gestão Dilma não aceita votação de projeto defendido por representantes do agronegócio
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Brasília – A ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, disse hoje (5), na cerimônia de promulgação da Emenda Constitucional 81/2014, que prevê a expropriação de imóveis nos quais for comprovada a exploração de trabalho escravo, que a medida não será sumária. Logo após a cerimônia, a ministra reiterou que o governo “não vai admitir” mudança no conceito de trabalho análogo à escravidão.

“Não vamos admitir, o Brasil não admite, a sociedade não admite retrocesso na regulamentação. Não tiraremos da legislação do trabalho escravo aquilo que a lei prevê: o trabalho exaustivo, a jornada exaustiva, o impedir de ir e vir, o trabalho degradante. Isso está consagrado na legislação brasileira”, frisou a ministra.

Ela afirmou que a expropriação só ocorrerá após decisão judicial, observado o amplo direito de defesa. A regulamentação determinará os procedimentos, até porque não há expropriação automática. Então, aquele argumento que é preciso regulamentar (o conceito de trabalho escravo) para não ficar submetido à opinião de um único fiscal do trabalho, não irá vigorar. Vai haver o direito de defesa, e só depois a expropriação do bem, da terra ou da propriedade.”

Mais cedo, em entrevista à Agência Brasil, a ministra disse que Projeto de Lei do Senado (PLS) 432/2013, da forma como está, não pode ser aprovado. O texto de regulamentação proposto pelo governo inclui entre as condições que podem constituir trabalho forçado a jornada exaustiva e as condições degradantes de trabalho, definições que não constam do texto original.

O PLS 432 tramita na Comissão Mista de Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição do Senado e é relatado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR). Na última terça-feira (3), o relator rejeitou propostas de alteração, alegando que tais conceitos são subjetivos.

Para a ministra, no entanto, o conceito está presente no Código Penal Brasileiro. O Artigo 149 inclui as situações como condição análoga à de escravo e estabelece pena de reclusão de dois a oito anos para quem praticar o crime.

O texto proposto pelo governo prevê que a expropriação das terras onde sejam encontradas tais condições de trabalho não será automática. “Inicialmente, o fiscal do Trabalho só notifica a área. Na regulamentação, vai ficar explícito que a expropriação só se dá a partir do processo legal, com amplo direito de defesa”, explicou Ideli.

Na cerimônia, defensores dos direitos humanos também reivindicaram que o conceito de trabalho escravo, que constará da regulamentação do texto, não seja descaracterizado. Para o movimento, deve ser mantido o conceito de trabalho análogo à escravidão do Artigo 149 do Código Penal. O dispositivo diz que comete o crime quem submete o empregado a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Parlamentares ligados ao agronegócio questionam o dispositivo e querem uma definição mais clara do conceito de trabalho escravo. Para eles, é necessário, por exemplo, definir exatamente o que poderia ser considerado como jornada exaustiva.

Da tribuna do Senado, a atriz Leticia Sabatella leu uma carta do jornalista Leonardo Sakamoto, assinada também pelo Movimento Humanos Direitos, pela atriz Dira Paes e por todos os integrantes do movimento em que pede o “fim da barbárie” existente no país. “É hora de abolir de vez essa vergonha, senhores congressistas. Com a manutenção do conceito de trabalho escravo como ele é hoje, vocês se tornam parte da história e, certamente, serão lembrados pelas futuras gerações, pois tiveram a coragem de garantir dignidade ao trabalhador brasileiro. Esse sim será um golaço histórico pré-Copa do Mundo”, disse a atriz.

No documento, eles classificam a promulgação da EC 81 como uma segunda abolição da escravatura, 126 anos após a assinatura da Lei Áurea. Conforme afirmam, toda propriedade deve cumprir função social, não podendo ser utilizada como instrumento de opressão ou submissão de qualquer pessoa. “Não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas principalmente de dignidade”, disse Letícia Sabatella.

Também Alcione considerou o momento histórico e se disse honrada em participar da solenidade de promulgação da emenda. A cantora interpretou a música Canto das três raças, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte.

Ao lado do presidente do Senado e do Congresso, Renan Calheiros, Alcione e Letícia Sabatella fizeram parte da Mesa da solenidade, assim como Jucá; o primeiro-secretário da Casa, Flexa Ribeiro (PSDB-PA); o ex-senador Ademir Andrade, autor da proposta que deu origem à emenda constitucional; e as ministras Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e Ideli Salvatti.
Medidas drásticas

Mais de um século depois do fim da escravidão, ainda não é possível dizer que o Brasil está livre desse mal, reconheceu Renan Calheiros. Segundo ele, foi por essa razão que o Legislativo decidiu adotar medidas mais drásticas, inclusive impondo a desapropriação de imóveis onde se constata a prática de trabalho análogo ao de escravo.

Calheiros observou que o termo escravidão traz à lembrança pessoas sendo trazidas à força ao país, na época da colonização, para trabalhar nos canaviais, cafezais, fazendas de gado e nas cozinhas das casas grandes. Observou que essas cenas deixaram de fazer parte do cotidiano do país, mas outras formas abusivas e servis de exploração do trabalho permanecem.

"A escravidão que atualmente combatemos não é mais aquela institucionalizada, escancarada, aberta aos olhos de todos, mas nem por isso menos cruel e execrável. Não se veem mais grilhões, correntes e pelourinhos, pois aqui ainda persiste insidiosa, encoberta, disfarçada", condenou.

O presidente do Senado observou que o trabalho análogo ultrapassa fronteiras. Citou que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima a existência de 30 milhões de pessoas submetidas a trabalhos forçados em todo o mundo. Uma parcela importante seria de latino-americanos. Noventa por cento dos casos acontecem na economia privada.

"Esses dados muito mais nos envergonham sabendo que o trabalho forçado afeta a camada da população mais carente, mais pobre, mais necessitada, mais vulnerável e que mais deveria estar sob a proteção do Estado. Entre esses, os mais atingidos são as mulheres, os migrantes menos qualificados, as crianças e os indígenas", declarou.

Calheiros registrou que em 1957 o Brasil aderiu à Convenção 29, da OIT, que pediu a eliminação do trabalho forçado. Diante da persistência da prática, foi lançado em 2003 no país um plano nacional para a erradicação da prática, com o apoio da sociedade civil.

Mais adiante, o Congresso aprovou alteração no Código Civil para caracterizar de forma mais efetiva o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.  O tipo penal ocorre quando há submissão a trabalho forçado, jornadas exaustivas ou em condições degradantes, ou quando ocorre restrição à liberdade de locomoção em razão de dívida contraída, a chamada servidão por dívida.

Mesmo com todos esses avanços, conforme Calheiros, a legislação praticamente não vem sendo aplicada, deixando uma “sensação de impunidade”. Diante disso, justificou, o Congresso partiu para medidas as mais drásticas no texto da PEC do Trabalho Escravo, como as desapropriações, sem direito a indenização. Na área rural, as terras deverão ser usadas para a reforma urbana. No meio urbano, os imóveis devem ser utilizados em programas de moradia popular.

A cerimônia foi acompanhada por artistas, como a cantora Alcione, juristas, e defensores dos direitos humanos.
 

Rede Brasil Atual, com informações das agências Senado e Brasil - 6/6/2014

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