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Comício da Sé em 1984 abriu campanha das diretas

Linha fina
Movimento havia começado em novembro de 1983, ganhou impulso e ameaçou precipitar o fim do regime autoritário, que negociou com moderados da oposição
Imagem Destaque

São Paulo – Foi "pouco expressivo", comentou o então porta-voz da Presidência da República, Carlos Átila, um mineiro que faria carreira diplomática e chegaria a presidir o Tribunal de Contas da União (TCU), até se aposentar, em 1998. Na época, Átila chefiava a Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência, que tinha à frente aquele que seria o último presidente do ciclo autoritário iniciado em 1964, o general João Figueiredo. O evento a que o porta-voz se referia era o comício realizado na praça da Sé, no centro de São Paulo, pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente. O movimento que recebeu o nome de Diretas Já ganhou as ruas do país de novembro de 1983 a abril de 1984, quando a emenda que tramitava na Câmara foi derrotada. No sábado 25, aquele comício completa 30 anos e se insere historicamente como um dos grandes eventos públicos de oposição direta à ditadura, que já perdia força e tentava organizar um processo de "abertura" política.

Em 2006, o advogado Carlos Átila deu depoimento para um livro sobre secretários de imprensa e porta-vozes presidenciais (No Planalto, com a Imprensa) e reafirmou que Figueiredo não era contra a eleição direta, mas avaliava que o país ainda não estava preparado, naquele momento político. "Os comícios, o noticiário a favor das diretas, tudo ocorreu sob a garantia do governo. E é a tal história, como diz Guimarães Rosa em Sagarana, tudo tem seu tempo e tem sua hora." Ele acrescentou que o presidente havia conseguido "desmontar", em 1984, o aparato militar que propiciara ações como a do Riocentro, em 1981, quando uma bomba explodiu antes do tempo, matando um sargento e ferindo um capitão – era a linha-dura resistindo ao processo de abertura.

Naquele 1984, o governo estava enfraquecido politicamente, a inflação voltara a disparar – na casa não de dois, mas de três dígitos –, o país havia pedido ajuda para o Fundo Monetário Internacional (FMI), à custa de medidas que sacrificavam ainda mais os assalariados. Movimentos contra o custo de vida (a "carestia", como se dizia) se espalhavam, as greves ressurgiam, os sindicatos voltavam a se manifestar, os partidos se reorganizavam, a eleição para governador havia sido restabelecida. Nesse contexto se esboçou o movimento das Diretas Já, que começou com um comício pouco noticiado diante do estádio do Pacaembu, em São Paulo, em 27 de novembro de 1983, continuou em Olinda (PE), Curitiba e Porto Alegre, em janeiro, andou pelo interior paulista, por Salvador, por Vitória, até pegar fogo definitivamente na praça da Sé, com estimativas que foram de 200 mil a 300 mil a pessoas, numa tarde chuvosa.

Ali se juntaram políticos de diferentes matizes, com o PMDB de Franco Montoro (na época, governador paulista) e Ulysses Guimarães, o PT de Luiz Inácio Lula da Silva e o PDT de Leonel Brizola, que começavam a pressionar o Congresso pela aprovação de uma emenda apresentada por um desconhecido deputado mato-grossense, Dante de Oliveira, que propunha o restabelecimento imediato das eleições diretas (Dante, que se tornaria governador, morreu em 2006). Ao mesmo tempo, um grupo, capitaneado pelo governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, deixava aberta a possibilidade de um entendimento com o governo, ainda sob a forma de eleição indireta, via colégio eleitoral. Foi o que se confirmou, meses depois.

Naquele dia 25 de janeiro de 1984, enquanto as oposições se espremiam no palco, ao lado de artistas como Bruna Lombardi, Alceu Valença, Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Ester Góes, Regina Duarte, Carlos Vereza, Jards Macalé, Fafá de Belém, Gilberto Gil e Moraes Moreira, entre vários outros, Tancredo ficou em Minas, para receber justamente João Figueiredo, em evento no interior do estado.

Seguiriam-se dezenas de comícios, até chegar aos da Candelária, no Rio de Janeiro, e do Vale do Anhangabaú, novamente em São Paulo, às vésperas da votação da emenda Dante de Oliveira, em 25 de abril, sob as medidas de emergência decretadas pelo governo, para garantir a "ordem" na capital federal. Tratava-se de um dispositivo constitucional que proibia manifestações. As transmissões de TV e rádio também foram proibidas. Pouco antes, no dia do comício do Anhangabaú, Figueiredo chegou a anunciar uma outra emenda, que também previa o restabelecimento das eleições diretas, mas apenas em 1988.

Depois de horas de debates – a sessão começou ainda pela manhã e se estendeu até o início da madrugada –, a emenda Dante de Oliveira foi a votação. Recebeu 298 votos, ante 65 contrários. Perdeu por 22 votos. Houve três abstenções, e 113 deputados se ausentaram, 112 do PDS (partido do governo) e um do PTB. Todos os 65 votos contra a emenda foram do PDS, que mesmo assim viu 55 acompanharem a oposição.

A mesma praça da Sé que abrigara uma multidão três meses antes foi o palco preferido de quem queria acompanhar a votação. Como a transmissão estava proibida, cada voto era "cantado" por telefone, anunciado no microfone e marcado no "placar das Diretas", que havia sido montado no local. Havia bem menos gente quando, já na madrugada do dia 26, se soube que a emenda havia sido derrotada.

No meio da frustração geral, cresceu a ala que negociava com o Planalto a sucessão presidencial indireta.

O governo resolvia suas pendências – no PDS, Paulo Maluf derrotava Mário Andreazza (o preferido de Figueiredo) e se credenciava à disputa pela Presidência da República no colégio eleitoral. Uma parte da situação se bandeou para a oposição, casos do vice Aureliano Chaves, José Sarney e Marco Maciel. O mineiro Tancredo tornou-se candidato pelo PMDB e venceu com 480 votos (166 do PDS), ante 180 dados a Maluf, em 15 de janeiro de 1985. Na véspera da posse, em 15 de março, foi internado e não saiu mais do hospital. Morreu em 21 de abril. O vice era justamente Sarney, que assumiu a Presidência e lá ficou até 1989, quando enfim o eleitor pôde escolher novamente seu presidente. Este ano, o país terá a sua sétima eleição presidencial seguida.

Lula -  O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou no sábado 25 vídeo recordando os 30 anos do comício na praça da Sé. Para ele, a mobilização fortalecida naquela data representa “o maior movimento cívico de toda a história dos 500 anos de Brasil”.

> Vídeo: assista ao pronunciamento de Lula

“O dado concreto é que fizemos talvez a campanha mais extraordinária que esse país já conheceu. Porque conseguiu unificar todo mundo. Conseguiu unificar o movimento sindical, o movimento estudantil, os empresários, todos os partidos, com exceção dos partidos de direita, e, na medida em que a campanha foi criando força, foi criando um incômodo nas pessoas que preferiam fazer um acordo com os militares para fazer uma transição pacífica do que fazer as eleições diretas para presidente”, avalia Lula.

Ao longo dos três meses seguintes, ele, pelo recém-fundado PT, Leonel Brizola, pelo PDT, e Ulysses Guimarães, pelo PMDB, rodaram o país em comícios multitudinários que fizeram com que a ditadura não pudesse mais ignorar a mobilização. “A pressão das massas não foi capaz de sensibilizar a direita conservadora que queria se manter no poder”, recorda Lula. Em paralelo ao movimento cívico, setores mais moderados da oposição ao regime tentavam negociar uma transição pela via indireta, o que acabou prevalecendo quando, em 25 de abril, o Congresso rejeitou a emenda apresentada pelo deputado mato-grossense Dante de Oliveira para retomar a escolha direta do presidente. “No ano seguinte a gente conseguiu fazer com que o colégio eleitoral elegesse o primeiro civil presidente da República desde 1964.”

Eleito em janeiro de 1985, o peemedebista mineiro Tancredo Neves não chegou a tomar posse. Internado em 15 de março, véspera da assunção, morreu em 21 de abril, deixando o lugar vago para o vice, José Sarney, que ocupou o Palácio do Planalto até 1989, quando foi eleito, aí sim pela via direta, Fernando Collor de Mello.

Ao comentar o processo de mobilização, Lula fez um pedido para que os jovens pesquisem sobre a história recente brasileira e tentem entender o movimento pelas diretas: “Precisamos aprender a valorizar a democracia. A democracia, em qualquer lugar do mundo, foi conquistada às custas de muita luta, de muito sacrifício, de muita morte. A democracia não foi de graça em nenhum lugar do mundo.”


Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual - 27/01/2014

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