Em artigo publicado na Rede Brasil Atual, a economista Regina Camargos mostra que as propostas de reforma da Previdência que têm sido apresentadas prejudicam os trabalhadores e preservam privilégios. Leia o artigo na íntegra:
As propostas de reforma da Previdência 2019 que têm sido divulgadas, se forem aprovadas, vão dificultar, e muito, o acesso do trabalhador à aposentadoria. Além disso, reduziriam drasticamente os valores dos benefícios atualmente pagos. As justificativas para a reforma se baseiam em alguns argumentos insistentemente veiculados por jornais, rádios e TVs.
Algumas vezes falam que as mudanças “visam a combater privilégios”. Em outras, alegam que “o déficit da previdência é gigantesco e se não for eliminado ocasionará o colapso do sistema”. Dizem ainda que esse déficit causa um “rombo” nas contas do governo e que por causa das nossas aposentadorias, o governo não consegue investir em saúde e educação.
Pois bem, sobre o assunto “privilégios”, o argumento serve para tentar convencer a opinião pública, pois na realidade esconde uma proposta que não mexe com os verdadeiros privilégios, e sim com os trabalhadores, sobretudo os mais pobres. Mas deixemos para aprofundar esse assunto num próximo artigo. Falemos agora sobre o suposto “déficit” e o tal “rombo”.
O déficit da previdência ocasionará colapso do sistema?
A suposta existência de um gigantesco déficit nas contas da previdência é muito polêmica e questionável. Não há consenso entre economistas e pesquisadores que estudam o tema. De um lado, estão os que afirmam que não há déficit. O que existe, na verdade, é um financiamento insuficiente da previdência.
A previdência, como parte do sistema de seguridade social, tem diversas fontes de recursos para financiá-la previstas na Constituição Federal, além das contribuições de empregados e empregadores.
Entretanto, esses recursos não têm sido aplicados em sua totalidade nessas obrigações constitucionais devido a algumas práticas adotadas pelo governo. Uma delas se chama Desvinculação das Receitas da União (DRU). Por esse mecanismo, o governo pode retirar até 20% de uma determinada área e deslocar para outra. Por exemplo, retirar da seguridade social para pagar despesas com juros.
Outro mecanismo está na chamada “desoneração da folha de pagamentos” e outras formas de isenções a empresas e setores, inclusive para empresas exportadoras do agronegócio. O governo abre mão de cobrar a contribuição previdenciária de alguns setores a pretexto de reduzir o custo e estimular a produção. O problema é que isso só funcionaria se fosse condicionado a metas e compromissos, como, por exemplo, criar e manter empregos, que por sua vez mantêm a economia interna aquecida. Mas o governo só alivia as empresas, sem exigir contrapartida.
A arrecadação da Previdência é insuficiente?
Os defensores da reforma consideram somente as receitas provenientes das contribuições de empregados com carteira assinada (que vão de 8% a 11% do salário) e de seus empregadores (a partir de 20% da folha de pagamentos). Isso leva, obviamente, à existência de um déficit astronômico. Por quê? Porque esses trabalhadores – que compõem o chamado Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – não são os únicos a quem a Previdência deve benefícios.
O governo superestima as despesas previdenciárias quando soma os gastos com RGPS e os gastos com o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis da União. Essa forma de cálculo é equivocada, pois, cada regime tem fontes diferentes de financiamento. Portanto, antes de se recorrer a uma reforma que dificulte o acesso dos trabalhadores e reduza o valor de suas aposentadorias no futuro, é preciso, antes, resolver os problemas com arrecadação. Um deles está na crise econômica que, ao causar grande desemprego e aumento de empregos sem carteira, derruba drasticamente as contribuições à Previdência.
O déficit da previdência é a principal causa do “rombo” nas contas do governo?
Orçamentos de governos são estruturalmente deficitários, pois as despesas sempre superam as receitas. Isso acontece em todos os países do mundo, entre eles Estados Unidos e Japão, que têm dívidas que ultrapassam a soma de todas as riquezas que produzem (o PIB).
Isso não significa que o governo brasileiro seja gastador. É impossível financiar os gastos de qualquer governo apenas com a cobrança de impostos.
Os países financiam seus déficits por meio da chamada dívida pública, que é um empréstimo que diversos agentes econômicos – sobretudo os bancos – fazem ao governo por meio da emissão de títulos, que são “papéis” que o governo negocia no mercado financeiro em troca, pagando juros.
Os defensores da reforma da previdência 2019 argumentam que os gastos com aposentadorias e outros benefícios são a principal causa do déficit público.
Segundo eles, o crescimento do déficit da Previdência faz com que o governo destine parcelas cada vez maiores do orçamento para aposentadorias, reduzindo, assim, os recursos para outras finalidades. Se o déficit da previdência não for eliminado ou pelo menos contido, dizem, num futuro próximo o governo não terá recursos para investir em outras áreas. E que se as despesas com aposentadorias e a dívida pública continuarem crescendo o governo precisará se endividar cada vez mais. Um dia essa dívida se tornará impagável e o país entrará em colapso econômico e social.
Esses argumentos são veiculados diariamente pela mídia como se fossem verdades absolutas. Entretanto, eles escondem os demais fatores que causam o crescimento da dívida pública. Nada dizem sobre os juros altos que o governo paga aos bancos para “rolar” sua dívida.
Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, em 2018 as despesas totais do orçamento do governo foram de R$ 2,6 trilhões. Desse total, R$ 641 bilhões foram despesas com Previdência Social enquanto o governo gastou R$ 1,065 trilhão com juros, amortizações e refinanciamento da dívida pública.
As despesas com Previdência representaram 24% do orçamento de 2018, enquanto os gastos com juros, amortizações e refinanciamento da dívida, 41%.
Trocando em miúdos, o fator que mais pressiona o crescimento da dívida são os juros exorbitantes que o governo paga aos agentes econômicos e as condições desfavoráveis de financiamento da dívida, cujo prazo máximo de vencimento é de cinco anos. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse prazo chega a 30 anos.
Esses números não são divulgados para a sociedade. Ficam “escondidos” numa página da internet que só os “especialistas” acessam e conseguem entender.
Jornal Nacional, Globonews e algumas colunas econômicas de jornais costumam mostrar “especialistas” assustando a opinião pública com o tal “déficit”, e escondendo os verdadeiros interesses por trás dessa conversa: o dos bancos, que ganham com juros altos; e o dos “investidores” (ou especuladores), que ganham com aplicações baseadas na dívida do governo (os títulos públicos).
Aliás, com as dificuldades que a “reforma” vai criar para a Previdência, a tendência será os trabalhadores (que puderem) recorrerem às aplicações em previdência privada mantidas por quem? Pelos bancos. Mas isso será também assunto para um próximo artigo.