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A ditadura prendeu até o Seu Pereira

Linha fina
Apesar de não ter nenhuma relação com o mundo “subversivo”, o funcionário do Sindicato foi preso duas vezes pelo regime militar, só por distribuir a Folha Bancária e contribuir com o movimento sindical
Imagem Destaque

São Paulo - O Sindicato, em todos os seus 90 anos, reúne milhares de histórias que merecem ser registradas. Dirigentes e funcionários da entidade que, mesmo nas funções mais simples, viveram a rotina de lutar e trabalhar pelo fortalecimento da democracia. Seu Pereira foi um deles.

> Página especial com os perfis dos 90 anos

Em 1963, o Sindicato já era muito bem estruturado. Ocupava todo o sétimo andar do Edifício Martinelli. Tinha uma boa biblioteca — com mais de sete mil volumes — um auditório com cabine de projeção de cinema, barbearia, um pequeno restaurante e também a gráfica, onde a Folha Bancária era impressa. Antonio Augusto Pereira foi contratado em março daquele ano para trabalhar como motorista da Kombi “zerinho” que o Sindicato acabara de comprar para fazer a distribuição do jornal. Mas exerceu por pouco tempo essa função. Como tinha um metro e noventa de altura, sentia dores nas costas por trabalhar com a Kombi. Um diretor, achando que ele já estava “muito velho” para dirigir no “trânsito caótico” de São Paulo, achou melhor registrá-lo na categoria “serviços gerais”.

Após o golpe de 64, a diretoria do Sindicato foi cassada. Muitos dirigentes foram presos e a entidade ficou sob intervenção. A Folha Bancária continuou circulando, mas tamanha era a falta de assunto por causa da censura que a compra de um livro novo para a biblioteca, por exemplo, merecia grande destaque (abaixo, a capa de uma edição com um poema de Berthold Brecht). Até que num belo dia alguém teve uma ideia: depois do jornal já impresso e aprovado pelos interventores, foram carimbados em todos os exemplares que seriam distribuídos no Banespa um texto “subversivo”, como era chamado tudo que não estivesse de acordo com os “ideais” da “Revolução”.

Seu Pereira, como era carinhosamente chamado pelos colegas, saiu para distribuir o jornal em frente à antiga sede do Banespa, na Rua João Brícola, centro da capital. Logo um investigador chegou, deu-lhe voz de prisão, mandou-o colocar todos os exemplares na viatura e ameaçou: “Se tentar fugir eu dou um tiro em você”. Seu Pereira, com a calma de mineiro velho, falou com voz paternal: “O que é isso rapaz, eu não sou bandido não. Sou funcionário do Sindicato e estou cumprindo meu dever”. O “tira” ficou tão desapontado com aquela reação que pediu desculpas e foram conversando cordialmente até o Largo General Osório onde ficava a temida sede do Deops. A preocupação de Seu Pereira era maior porque a esposa estava internada na Beneficência Portuguesa, pelo IAPB (o extinto Instituto de Assistência e Pensão dos Bancários), e os três filhos estavam sozinhos em casa, o maior deles com apenas doze anos. Mas apesar do “chá de cadeira” que levou esperando para falar com o delegado, não houve maiores problemas. Seu Pereira foi liberado e a carga “subversiva” ficou apreendida.

Mesma sorte ele não teve três anos depois. Seu Pereira então trabalhava na recepção do Sindicato, mas pela manhã fazia hora-extra distribuindo a Folha Bancária. Foi preso em frente à Agência Centro do Banco do Brasil (pertinho da sede do Sindicato). Enquanto seguiam para o Deops, o investigador tentava intimidá-lo: “O senhor vai ser transferido para a Ilha das Cobras” (onde ficava o sinistro presídio da Marinha). Seu Pereira repetia que era funcionário do Sindicato e não era ele quem escrevia o jornal. No Deops, fez a bobagem de gozar da cara do delegado. Ao ser perguntado: “O senhor é comunista?”. Seu Pereira respondeu: “Desde criancinha” e o delegado, já com a voz alterada: “O quê?”. E ele, sem maiores protocolos: “Olha, rapaz, eu nunca me interessei por política”. O delegado, talvez por não haver sido temido, nem chamado de “doutor” como gostaria, mandou “fichá-lo”. Naquela noite ele chegou tarde em casa, aborrecido com o fato de ter sido fotografado com um número no pescoço “como um bandido”, dizia.

Mas as prisões não afastaram Seu Pereira da distribuição da Folha Bancária. Continuou também trabalhando na recepção até a aposentadoria, em abril de 1975. Morreu em 17 de janeiro de 1999 aos 92 anos. Seus três filhos – o mais velho deles Carlos Augusto, responsável por esse relato, além de Maria Eunice e Maria Silvia – seguiram o exemplo do pai. Também foram bancários, sindicalizaram-se desde o início e participaram de todas as greves. Hoje são aposentados pelo Banco do Brasil. E, agora que os arquivos do Deops tornaram-se públicos, descobriram que o número do prontuário do pai é 136.999.

A trajetória do Seu Pereira, da esposa, Dona Clara (hoje com 90 anos), e dos seus filhos bancários é uma dentre muitas que merecem registro nessa história que descreve um pouco a de todos os trabalhadores do Brasil.


Cláudia Motta - 15/4/2013

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