O que caracteriza os Estados autoritários e de exceção, e o que os diferencia das democracias? E o que a realidade política do Brasil e do mundo contemporâneo tem a ver com esses questionamentos? Esses foram alguns dos temas abordados na palestra proferida pelo jurista Pedro Estevam Serrano, na mesa Defesa da Democracia, na manhã do sábado 9, durante a 20ª Conferência Nacional dos Bancários, que se encerra no domingo 10.
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Segundo Serrano, a sociedade contemporânea vive sob constante Estado de Exceção, mesmo durante regimes democráticos. E isso se aplica no Brasil. Por aqui, esse processo se inicia ainda na década de 1990, quando o país importa o discurso de guerra às drogas dos Estados Unidos. De lá para cá, a população carcerária quadriplicou no Brasil, e contribuiu para o quadro de mais 60 mil assassinatos por ano.
“O 'inimigo' no Brasil não é o estrangeiro, não é o terrorista. É o bandido. E em geral o bandido é jovem, negro e de periferia. A título de combater o bandido, se cria uma força policial com característica militar, gerenciada pelo sistema judiciário em que mais de 40% dos ccondenados não tiveram direito a ampla defesa”, avalia Serrano, que é pós-doutor em Direito do Estado, pela Univerisdade de Lisboa.
Estado de exceção na política
E esse mecanismo suspensivo dos direitos migrou para a política, continua Serrano. Ou com o impeachment inconstitucional, verificado em 2016 com a queda de Dilma Rousseff, ou observado em processos penais de exceção que têm a aparência de processos legais, mas com conteúdo de perseguição política. Hoje o caso mais conhecido, segundo Serrano, é o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no qual ele afirma categoricamente que não houve provas ou amplo direito de defesa.
“Eu li o processo inteiro, dei um parecer no Tribunal Intenacional de Direitos Humanos, é um processo muito mal produzido, uma medida de exceção. A roupagem democrática está em farrapos”, afirma Serrano.
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Mas antes disso, as lideranças dos movimentos sociais já sofriam perseguições. “São medidas praticadas no direito comum. A forma de migrar do controle social das periferias para o ataque político foi justificado com o discurso do banditismo, próprio das elites”, avalia o jurista.
Movimento mundial
Atualmente o mecanismo autoritário se aperfeiçoou e age em diversos países considerados democráticos. Serrano cita o Patriotic Act, conjunto de leis promulgadas pelo governo dos Estados Unidos após o 11 de setembro que violam uma série de liberdades individuais. Segundo o jurita, a Suprema Corte daquele país permite o encarceramento de suspeitos por até 90 dias sem comunicação e sem abertura de inquérito. Na Europa, foram promulgadas diversas leis antiterrorismo. “Nos países de primeiro mundo, a figura do 'inimigo' é o estrangeiro, mais especificamente o muçulmano.”
“Ao invés de se combater o problema do terrorismo, criou-se outro problema: o autoritarismo, sob a justificativa do combate ao terrorismo. São medidas de exceção, mas muito mais eficiente: a democracia continua acontecendo, há eleições. Você identifica o 'inimigo', ataca ele, suspende seus direitos e é muito mais cirúrgico e mais intenso porque a reação social não identifica [esse proceso]. É um mecanismo global”, afirma Serrano.
Na América Latina isso ocorre também, mas com extensão e contra inimigos diferentes. Por aqui, segundo Serrano, o sistema de Justiça passou a ser o agente de exceção.
Bolsonaro, a paz e a ordem
Durante a palestra, Serrano citou o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1676). Hobbes argumentava que os soberanos dos Estados absolutistas procuravam buscar a adesão das pessoas alegando a paz e a segurança.
“Grosso modo é assim até hoje. O que o Bolsonaro defende para poder tratar as pessoas com autoritarismo, violência e sem respeito aos direitos? Porque 'é necessária a garantia da paz e da segurança'. Esse é o discurso da modernidade [1453-1789] até hoje. Hobbes não está morto. Está mais vivo do que nunca”, afirma Serrano.
Com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) impossibilitado de concorrer, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) lidera todas as pesquisas de intenção de voto para Presidência da República na eleição de outubro de 2018.
Liberalismo, revolução e capitalismo contemporâneo
Já John Locke (1632-1704) é considerado um dos criadores do pensamento liberal político e defendia o direito à resistência diante de regimes tirânicos. Em certas situações, até com violência. A ideia de revolução surge com ele. É a ideia fundamental do Estado Democrático de Direito. Um Estado submisso aos direitos e que garanta a possibilidade de resistência contra manifestações tirânicas do poder, que podem surgir inclusive dentro de uma democracia.
“É gozado como o capitalismo contemporâneo esquece essa tradição liberal. Aliás, ele reage mal a esse elemento do liberalismo”, afirma Serrano.
Nazismo e marxismo
Serrano citou outro teórico: o jurista e filósofo adepto do nazismo Carl Schmitt (1888-1985), que defendia que o 'inimigo' não era necessariamente outro Estado ou outro povo, podendo, na visão de Schmitt, estar dentro da própria população nacional.
“O nazismo dá nome a esses 'inimigos'. Primeiro foi o corrupto, depois o comunista. Em seguida foi o judeu”, lembra Serrano.
A guerra entre dois países exige que alguns direitos dos cidadãos sejam suspensos. Mas Shmitt traz esse regime de exceção para as relações internas. E na sua visão, para ser forte, o povo deve se manter unido. Qualquer um que pregue a desunião, deve ser cosiderado inimigo, ter os seus direitos suspensos, e ser tratado com desumanidade, podendo ser eliminado fisicamente. Para Serrano, este é o segredo do autoritarismo: a ideia da união da sociedade. A ideia da extinção dos conflitos. O jurista avalia que teoria do inimigo único é fundamental para entender o Estado de exceção.
“Hoje é muito claro isso. Algumas pessoas falam que a esquerda divide a sociedade. Todo mundo já deve ter visto essa bobagem no Facebook. Não é a esquerda que divide a sociedade. É a democracia que divide a sociedade. Democracia é o modo de compor os conflitos sociais de forma pacífica. Quem quer a sociedade unida é o fascismo, foi o nazismo, são as ditaduras, são esses populismos de direita que quiseram a sociedade unida. É característica deles. Para eles, tudo que divide o povo é inimigo, e a ideia de partidos divide o povo. Portanto democracia seria uma ideia inimiga”, resume Serrano.
A ideia de que marxismo e nazismo são iguais também não merce crédito, afirma Serrano. Isso porque o marxismo entende que a sociedade está em constante luta de classes, enquanto o nazismo prega a união de classes. “Por isso o nazismo é inimigo do marxismo. Porque o marxismo divide a sociedade entre trabalhadores e patrões”, explica Serrano.
Características comuns dos Estados de exceção
Os Estados de exceção têm outras características similares, de acordo com o jurista: em regra geral, são estabelecidos por forças que se julgam dotadas de uma capacidade moral superiora à do resto da sociedade, não são “contaminados” pela corrupção ou pelos “pecados” da política, e chegam ao poder com apoio de uma parte da população para que a “ordem” seja estabelecida. Muitos têm início sob o argumento de serem provisórios, mas ficam no poder indefinidamente. Um exemplo: os militares brasileiros tomaram o poder em 1964 prometendo eleições em 1965. Ficaram mais de 20 anos no poder.
Serrano enfatiza que o trauma gerado na sociedade ocidental por causa do fascismo e do nazismo, nos anos 1930 e 1940, permitiu o estabelecimento dos Estados de exceção apenas nos países de capitalismo periférico.
“A modernidade depende do capitalismo periférico para poder existir no primeiro mundo. Nós [brasileiros] sempre vamos ser periféricos se não reagirmos. Seremos destinados ao atraso e à violência. Seremos destinados a reproduzir formas primitivas de acumulação de riqueza e poder. Essa forma primitiva de existência, como vivemos, nos levou a viver o autoritarismo por muito mais tempo do que na Europa.”