Na última sexta 11, o promotor Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público de São Paulo, denunciou 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), por supostamente integrarem “organização criminosa”, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”. Das 19 prisões pedidas por Conserino, quatro já estão sendo cumpridas: a de Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMPT). Todos negros e pobres.
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Em documento sigiloso a que o site Jornalistas Livres teve acesso, o promotor sustenta que membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si” de maneira ordenada, com divisão de tarefas, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.
Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que investigava responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida no dia 1º de maio de 2018, quando sete pessoas morreram. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), coordenado por Ananias Pereira dos Santos, era responsável por aquela ocupação. Entretanto, o inquérito policial e a posterior denúncia de Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no edifício Wilton Paes de Almeida, optaram por mover uma verdadeira cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro de São Paulo.
Caso Conserino tivesse visitado a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira - que já foi acusada de extorsão em 2017 e inocentada em 2018, ao ficar comprovado que as contribuições dos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis - teria atestado a limpeza e habitabilidade de um prédio que três anos atrás era um depósito de lixo, doenças e ratos. O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo.
De acordo com Lúcio França, advogado que representa Carmen Silva, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do MSTC, a denúncia apresentada por Conserino é uma reedição do processo em que Carmem foi absolvida em 2018.
“As contribuições para a manutenção do prédio são decididas em assembleias e todas as famílias devem colaborar ou justificar eventuais faltas; há uma escala de limpeza dos andares e todas as famílias precisam contribuir com a higiene do espaço comum, e por aí vai. No processo que se iniciou em 2017, tudo isso foi juntado, e Carmen Silva Ferreira foi inocentada. Estamos assistindo agora a uma reedição daquele processo que ocorreu em 2017 e a denúncia atual do promotor de justiça Cassio Conserino cita `coincidentemente´ contra a Carmen as mesmas testemunhas acusadoras que foram desqualificadas no processo que resultou na absolvição da liderança do MSTC”, afirmou o advogado aos Jornalistas Livres.
“Isso configura-se uma clara ilegalidade. O princípio non bis in idem (não repetir sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato delituoso. O bis in idem no direito penal seria a não observância desse princípio, acusando e julgando uma pessoa pelo mesmo crime”, enfatiza Lúcio França.
Denúncia viciada
Baseada em depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que revelam apenas brigas entre vizinhos, a denúncia do promotor Conserino contém erros primários como afirmar que em sua maioria as ocupações são habitadas por estrangeiros, o que não corresponde a verdade, e que Carmem Ferreira Silva, do MTSC, seria responsável pela ocupação do Cine Marrocos - fechada em 2016 depois de encontrados armas e drogas no poço do elevador - que na verdade era coordenada pelo Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS). Uma letra que, nesse caso, faz toda a diferença e revela o caráter persecutório da denúncia de Conserino.
Movimentos diversos
Ao contrário do que sustenta Conserino em sua denúncia, quando tenta igualar todos os movimentos de luta por moradia que atuam no centro de São Paulo e enquadrá-los como parte de uma mesma organização criminosa, o próprio secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, reconhece que estes movimentos são diversos. À época do incêndio do Wilton Paes declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E, na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, afirmou que Carmen Ferreira Silva “é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela”.
Apoio dos moradores
Contrariando a narrativa de que seriam supostas vítimas de extorsões mediante violência e ameaças, quatro mil moradores de ocupações assinaram abaixo-assinado reivindicando a liberdade das lideranças Preta Ferreira, Ednalva Franco, Angélica Lima e Sidney Ferreira, presos preventivamente desde 24 de junho. Na quarta-feira 17, o documento foi entregue no Fórum da Barra Funda por uma comissão dos movimentos de moradia formada por advogados, integrantes de movimentos de defesa de direitos humanos e pessoas sem-teto.
Prisões políticas
Para Lúcio França, as prisões de Carmem Ferreira Silva e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, possuem caráter político. “As acusações contra Carmem e filhos são acusações políticas, típicas de ditaduras (...) São prisões de pessoas primárias, sem antecedentes criminais, com endereços e trabalhos conhecidos, que não têm envolvimento criminal algum, muito menos com crime organizado, como eles querem fazer crer. São prisões totalmente políticas. Nós acreditamos na inocência de Carmen Silva Ferreira, de Preta Ferreira e de Sidney Ferreira. Pela vida que eles têm, por tudo que eles fazem pela população mais pobre da cidade de São Paulo, até sacrificando suas vidas pessoais em função de uma causa.”