Margarida Alves foi assassinada em 12 de agosto de 1983. O objetivo dos mandantes do crime que tirou a vida da presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba, era calar sua voz e a luta pelos direitos dos homens e das mulheres do campo. Mas, não sabiam os assassinos, a dirigente sindical era semente que continua gerando novas Margaridas 36 anos após sua morte. “E elas têm certeza de que vale a pena lutar pelos direitos dos povos do meio rural”, afirma Mazé Morais, coordenadora-geral da Marcha das Margaridas 2019 – a sexta desde o ano 2000 – que reuniu cerca de 100 mil trabalhadoras rurais do campo, da floresta e das águas, em Brasília, nos dias 13 e 14 de agosto.
A reportagem é da Rede Brasil Atual.
Elas foram homenageadas em sessão solene na Câmara dos Deputados, fizeram a Mostra Saberes e Sabores das Margaridas no Parque da Cidade, debateram saúde, educação, previdência, soberania, sexualidade, agroecologia, direito à terra. Gritaram por Lula livre, em defesa da democracia, e se posicionaram contra o governo de Jair Bolsonaro e a violência que abate milhares de mulheres todos os anos no Brasil.
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Eram todos rostos sorridentes. A despeito da dificuldade para chegar à capital federal – muitas viajaram de ônibus por vários dias –, do chão duro para dormir, das filas para se alimentar e usar os banheiros, elas sorriam. Trocavam gentilezas, cantavam suas histórias, dançavam sua cultura. E ensinavam, a quem estivesse disposto a aprender, que a vida pode ser dura e bela ao mesmo tempo. E que a disposição para lutar é que faz toda a diferença.
Paula Aires, de 67 anos, e Rosângela Carvalho, de 56, são um exemplo. Saíram de Pedro do Rosário, no Maranhão, no domingo 11, cedo, para chegar em Brasília na terça-feira. Depois de encarar a fila do banho nos contêineres, sob o sol de mais de 30 graus, dividiam, entre risos, o hidratante para a pele aguentar a secura característica do planalto central nesta época do ano.
“A gente traz um batom de manteiga pro beiço não rachar e passa esse cremezinho pra pele segurar. A gente já tá preparada, vem sabendo de tudo. A coordenação vai dizendo pra gente o que é necessário e cada dia a gente bota uma pedrinha dentro da bolsa”, brinca Paula.
“É a quarta marcha que a gente vem. E a cada marcha a gente espera a solução de algum problema, mais conquistas”, explica Rosangela. “A gente cansa, sente sono, passa da hora de se alimentar, mas o objetivo maior da marcha, que são nossas conquistas, supera tudo.”
A maranhense de 67 anos conta que apesar das dificuldades, que aumentam a cada dia, não desanima. “Conquistamos nossos direitos como mulher. E quanto mais a gente busca, mais tem outros problemas”, diz, ressaltando a violência “que tem de acabar”. “E só vai acabar quando a gente tiver esse mutirão de mulher no Brasil inteiro, elas se empoderarem. E essa marcha nos empodera.”
A já tradicional caminhada até a Esplanada dos Ministérios, para elas, é um resumo de tudo. “É caminhar nas ruas dessa capital do Brasil que também é nossa”, ressalta Rosângela. “Pra mostrar a esse presidente que a gente tem força, a gente é mulher e não está concordando com essa coisa que ele tá fazendo, não. Ele é presidente de todos nós. Então, não estamos concordando com essa coisa que está aí, tirando nossos direitos. Isso aí vai muito nos prejudicar, por isso estamos aqui”, indigna-se Paula.
Casadas, elas deixaram com os maridos os cuidados com a casa, a terra e as crias. “Vamos chegar de volta levando muita esperança para nossas famílias, para os agricultores que a gente representa”, conta Rosângela que planta milho, mandioca, tem uma horta, galinha, bois, porcos. “Tudo que der certo pra existência da gente.”
Paula disse ainda em casa: “É minha luta, tenho de ir mesmo”. Rosângela reforça: “Não é à toa que a gente está aqui. Estamos em nome de milhares de maranhenses e não estamos à toa. Estamos ganhando força, unindo as mãos”.
Margaridas do diverso Brasil
As mãos calejadas das experientes Paula e Rosângela dividiam espaço na marcha com sementes germinadas há pouco, como a estudante de Direito Dallete Janyele, de 21 anos. “Feminista e de luta”, ela saiu de Recife para ir a Brasília participar da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, realizada no dia 13. E seguiu no dia 14 com as Margaridas.
“Meus avós viveram de cortar cana, plantar feijão e eu vivenciei toda essa realidade”, conta a jovem, primeira da família a ingressar em uma universidade (a Estadual de Pernambuco, UPE) e romper com o ciclo de gravidez precoce e falta de oportunidades. “Minha família deposita muita esperança em mim. Cresci com esse espírito de cuidar da terra, trago isso no meu coração. Com toda essa questão política de desmatamento, liberação de agrotóxicos, tudo isso instiga um posicionamento.”
Dalette conta que a universidade pública permitiu-lhe fazer pesquisa científica, que ela coloca em prática junto às comunidades indígenas de sua região. “Pesquisamos sobre os efeitos do uso abusivo de agrotóxicos, sobre questões territoriais.”
E, claro, teme o futuro diante dos cortes de investimentos na educação pública, agravados pela gestão de Jair Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub. “Como é que o Brasil vai crescer se os jovens não pesquisam, como é que vai desenvolver novas tecnologias, novos conhecimentos? Como é que o Brasil vai recontar sua história se o povo não vai poder estar lá (nas universidades) fazendo isso?”, questiona.
Semente que é, a jovem dá a receita para estimular e ampliar a luta. “É preciso que a gente se conscientize. Informe-se, procure sites que tenham responsabilidade com o leitor e façam com que a informação seja repassada. Quanto mais conhecimento, mais poder a gente vai ter para refletir sobre nossa realidade e ver onde e como a gente pode mudá-la.”
Participar das marchas, diz, trouxe mais força para seguir esse caminho. “Estar aqui, olhar para essas mulheres, ver a expressão nelas, ouvir suas histórias faz com que meu coração fique efervescente, que eu ganhe energia pra lutar mais, pra levantar minha voz e gritar tão alto quanto eu puder em defesa dos nossos direitos, o direito à terra.”
Expondo seus bombons e biscoitos na Mostra de Saberes e Sabores, Odília Rogado, de 48 anos, veio de Goiânia para sua terceira marcha. Foi dos aprendizados acumulados ali que criou, com outras mulheres, a Rede Solidária Berço das Águas, da qual é coordenadora. São 52 grupos que contam com 75% de mulheres produzindo alimentos feitos com frutos e castanhas do Cerrado, além de artesanato, roupas, produtos da agroecologia.
Atualmente 729 famílias são diretamente beneficiadas pelo projeto fundado em 2010. Há seis meses, passaram a utilizar os recursos da venda de bombons feitos com castanha de baru, amendoim ou cajá-manga para fomentar os grupos. “Emprestamos esse dinheiro e quando melhoram sua produção, os grupos devolvem o dinheiro e outros podem pegar emprestado”, conta com orgulho.
“A Marcha das Margaridas faz história nas nossas vidas cotidianamente. E pretendo trazer cada vez mais mulheres. Temos compromisso de fomentar a Marcha, não só hoje, mas para que permaneça viva no nosso dia a dia, no nosso cotidiano”, diz, ressaltando o empoderamento que a Marcha trouxe para sua vida. “Uma pessoa fez tantas mulheres marcharem em prol de um objetivo só que é fortalecer a luta de todas, em todos os sentidos. Estar aqui é como se a gente tivesse trazendo a vida de todas as mulheres que lutam com a gente para dizer e reafirmar que nós, juntas, podemos muito.”
Amazônia e quilombos ameaçados
A assistente social de Belém do Pará, Dandara Martins, acompanhava as pescadoras e extrativistas da região Amazônica, que foram levar à Marcha sua preocupação com o fim das políticas públicas e o flagrante ataque à floresta.
“A Amazônia está sendo cada vez mais destruída, com desmatamentos, avanços sobre os territórios tanto indígenas, quanto quilombolas e extrativistas”, diz a jovem de 23 anos. “São diversos projetos que o Estado vem pensando sem priorizar as comunidades que estão há anos ocupando esses espaços. Por isso é tão importante que essa gente venha trazer (para a marcha) sua produção, seus produtos, suas falas, suas vivências.”
É grande a preocupação, do povo da floresta e das águas, diante da maneira de governar de Jair Bolsonaro, que nega o desmatamento na região e acaba por incentivar – com argumentos como o que associou dificuldades de licenciamento ambiental com a presença de “cocô petrificados de índio”– o avanço sobre vários territórios, principalmente das comunidades tradicionais. “As populações são as mais prejudicadas, assim como o meio ambiente, já que são elas que vêm protegendo a biodiversidade.”
A pescadora Dayane Silva Araújo, também de 23 anos, relata que sua comunidade tradicional de Pirocaba, na cidade de Abaetetuba, no Pará, vive um momento de resistência contra esse governo. “Somos pescadores, extrativistas. É ali que a gente pesca, é daquilo que a gente vive. Mas o capital só visa o lucro, o poder. E esse governo não nos ampara de maneira nenhuma”, conta, sobre os avanços de grandes empresas sobre a região.
“Por isso estamos na marcha, para expor nosso repúdio em relação a esse governo. E dizer que a gente está resistindo e vai continuar a resistir. Independentemente se a gente é pobre, pescador, se a gente é quilombola.”
Segundo Dayane, desde a eleição a situação na região já piorou muito. “Se antes as empresas já avançavam sobre as comunidades, sem pedir permissão nem nada, agora só piora, quando Bolsonaro faz esse discurso de que tem de integrar a Amazônia. Mas a Amazônia não é uma terra sem homens. Vivemos lá há muito tempo e não precisamos que ninguém vá colonizar a gente. Vivemos muito bem daquela maneira, do jeito que a gente se alimenta, do jeito que a gente vive nossa cultura.”
Quilombola de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Juliana da Silva Vaz, 29 anos, viajou mais de 12 horas para chegar à Marcha das Margaridas com outras dezenas de mulheres da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Nessa conjuntura de extremo retrocesso, nós, como comunidade quilombola, reivindicamos principalmente a demarcação e titulação dos nossos territórios.”
Para ela, a noção de terra coletiva dos quilombos coloca em crise o projeto de gestão do governo Bolsonaro, focado na valorização da propriedade privada. “Nosso território, que tem a ver com nossa identidade, está sendo ameaçado por esse governo.”
Marília Souza, também quilombola de Bom Jesus da Lapa, considera que o atual governo veio para destruir e acabar com qualquer sonho de existência do seu povo. “A gente sofre com o loteamento das nossas áreas. E tem o desrespeito da figura da mulher, a morte da juventude quilombola.”
Para ela, estar na marcha é muito importante. “Estar aqui, trazer a nossa cara, a nossa presença é mais uma força pra gente se unir com as tantas Margaridas que tem nesse mundo. Isso é para mostrar que a mulher está aqui firme e forte, cobrando seus direitos. Isso é empoderamento. Isso é pra gente não se sentir calado e pra eles saberem que nós estamos aqui. Enquanto vida Deus nos der, seguiremos lutando.”
Maior marcha da América Latina
Fruto dessa diversidade de experiências, de vivências, e dos diferentes povos que compõem a matriz cultural do gigantesco Brasil, a sexta Marcha das Margaridas foi um sucesso comemorado por Mazé Morais. Além de bater a marca de 100 mil participantes, a marcha de 2019 contou com uma grande delegação internacional, com mais de 50 representantes de 26 países de todos os continentes.
“Foi a maior marcha da América Latina, a maior marcha que nós trabalhadoras rurais do campo, da floresta e das águas fizemos. E com várias organizações parceiras e movimentos que se somaram nesse momento tão desafiador. Todos acreditando na nossa luta e que é possível mudar. Somente nessa unidade, nessa força, nessa resistência é que a gente vai continuar avançando”, afirma Mazé, secretária de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). “Foi um momento de muita luta e resistência das mulheres. Não temos dúvida de que elas voltaram aos seus municípios muito mais fortalecidas. E já se organizando para daqui a quatro anos voltar a Brasília.”
Assim, nem bem acabou a sexta Marcha, logo recomeçam os debates para construir a próxima. Totalmente descentralizada, as decisões têm ampla participação das mulheres desde suas comunidades, e dos mais de 4 mil sindicatos filiados à Contag, além da parceria de 16 movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras, centrais sindicais e organizações internacionais.
Essa troca de experiências é o cerne da Marcha. As mulheres se doam, levam conhecimento que têm e também querem receber conhecimento. “Para elas é muito rico estar aqui. Fazem chapéu, vestido, fazem rifa para estar aqui e isso torna a Marcha diferente de várias ações”, relata Mazé.
Sabedoras de que o atual presidente da República não partilha dos anseios das mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, pela primeira vez desde o ano 2000 a plataforma política da Marcha das Margaridas, com os 10 eixos políticos e suas proposições para a transformação do país, não foi entregue ao governante da nação (acesse aqui o documento na íntegra).
“Foi uma decisão coletiva. As Margaridas não viram sentido em entregar esse documento a Jair Bolsonaro. Ele, diariamente prega a violência, o preconceito contra mulheres, negros, indígenas, LGBTs; desrespeita as mulheres e os direitos dos trabalhadores; ataca a Amazônia, nossa soberania e nossa natureza autorizando o uso de agrotóxicos; destrói nossos sistemas públicos de saúde e educação”, explica Mazé. “Nossa Plataforma é pública e reconhecida por todo o mundo. Estamos à disposição de todos os governantes que quiserem ajudar a construir um país justo e igualitário.”