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Quando penso no futuro, não esqueço do passado

Linha fina
Memorial da Democracia coloca ao alcance de um clique a história do Brasil construída com suor, e muitas vezes sangue, de milhares em busca da liberdade e igualdade
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São Bernardo do Campo – Que importância tem a democracia? A resposta talvez esteja nas milhares de vidas humanas que em todo o mundo tombaram em sua defesa. No Brasil, estima-se mais de 400 os mortos pela ditadura que durou 21 anos, a partir de 1º de abril de 1964. Milhares foram torturados e sofreram com o exílio de sua terra, família e amigos.
Manter um museu, memorial, qualquer espaço físico ou virtual que permita lembrar a história da luta pela reconstrução da democracia é essencial. E foi isso que fez o Instituto Lula. Desde sua fundação, em 2010, uma equipe composta por jornalistas, pesquisadores e historiadores reuniu um grande acervo com cerca de 700 vídeos e áudios que relatam a participação de lideranças sindicais, políticos, artistas e pessoas do povo que deram suas vidas pela liberdade.

Lançado na noite de terça-feira 1º de setembro, o site multimídia (www.memorialdademocracia.com.br) contém ainda fotos, textos, desenhos, jornais, cartazes e diversos documentos apresentados de forma cronológica. Na primeira fase há dois módulos, que se referem aos períodos mais recentes da luta política e social no país: da ditadura civil-militar – “1964-1985: 21 anos de resistência e luta” – e a redemocratização – “1985-2002: construindo a democracia”. O Instituto Lula trabalha para lançar mais três módulos em breve, que cobrirão os períodos de 1930 a 1945, 1945 a 1964 e 2003 a 2010. Este último abordará as lutas populares nos dois mandatos de Lula na Presidência da República.

Redemocratização – De cara, um dos vídeos exibidos homenageava os anfitriões – o lançamento foi feito no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – e tinha como locutora a grande atriz e militante da luta pela redemocratização do país, Lélia Abramo (1911-2004), que dá nome ao espaço cultural dos bancários na Regional Paulista do Sindicato.

No palco, dezenas de lideranças atuantes pelos direitos democráticos no Brasil. O jornalista Franklin Martins, o professor Ladislau Dowbor, o presidente da CUT, Vagner Freitas, Guilherme Boulos do MTST, Gilmar Mauro do MST, o rapper Rappin Hood. Todos em torno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mencionado sempre como o grande mentor da luta pela democracia no país.

Paulo Okamoto, presidente do Instituto Lula, foi o primeiro a falar. Apresentou o projeto do memorial e falou do privilégio de entregar um trabalho tão importante de preservação da história do país. Lembrou que o Instituto trabalha pela integração com a África e com a América Latina, “e isso é trabalhar a democracia”. E contou que tudo começou da discussão do legado dos governos Lula e Dilma e de não deixar perder o que foi construído de forma democrática e participativa. “Hoje estamos entregando a história do país com essa visão.” Okamoto mencionou outros memoriais que inspiraram esse projeto. “Memorial é um prédio, um monumento que nos faça refletir. Por meio de memoriais no mundo muita luta foi recuperada e mantida”, como os museus do holocausto, ou o do apartheid na África do Sul. “Ficava imaginado se as pessoas pudessem sentir um pouco do cheiro do gás lacrimogênio ou o barulho dos helicópteros no 1º de maio aqui no ABC. Isso faria a nossa juventude pensar na importância da democracia. É a possibilidade de ter liberdade, justiça, oportunidade para todos, ter tolerância, combate à corrupção. Se tudo isso não for compreendido pelo nosso povo, não teremos uma pátria democrática.”

Ambição de memória – Entre os colaboradores do projeto do memorial, está a historiadora Heloísa Starling, que lançou com a antropóloga Lilia Moritz Schwarz, em maio, o livro Brasil: uma Biografia, abordando as lutas políticas e democráticas para a construção do país.

Heloísa falou ao público emocionada “por estar no lugar onde a história ocorre e diante dos biografados”. “Temos uma história interessante e está ao alcance de cada um de nós, em todas as esquinas. O memorial pretende ser uma dessas esquinas. Nosso presente está repleto do nosso passado. Por causa disso o memorial guarda uma ambição de memória e um desenho de recordação. O dever de não se esquecer de lembrar”, disse, citando o verso do compositor Paulinho da Viola: “quando penso no futuro, não esqueço do passado”.

Ideias sólidas – Carina Vitral, presidenta da UNE, falou da honra de participar do lançamento do memorial. “Contar a história da democracia é contar a história da União Nacional dos Estudantes. Essa luta que está viva até hoje e foi interrompida pelo golpe de 1964. Vários líderes pagaram com suas vidas, foram presos, torturados, mortos. Alguns até hoje não tiveram seus corpos encontrados, como nosso eterno presidente Honestino Guimarães.” E ressaltou: “Atacam a democracia por meio dos nossos líderes. Nós estudantes não deixaremos isso acontecer. Responderemos com luta. Quando encherem certos balões, vamos furar. Tenho certeza que nessa luta nós venceremos. As ideias deles são tão frágeis quanto aquele balão. Nossas ideias são sólidas. Esse memorial vai contribuir para a juventude manter acesa a chama da luta pela democracia.”

Outro que pegou o microfone emocionado foi Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, morto pela repressão da ditadura. “São 40 anos da morte do meu pai. Há seis anos criamos o Instituto Vladimir Herzog e o projeto Resistir é Preciso... um projeto de memória que resgata a história do Brasil contada pela imprensa nanica que combateu a ditadura. E isso foi possível graças à visão de pessoas como Franklin Martins e o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vanucchi.” Ivo também agradeceu à presidenta Dilma “que fez a lei que criou a Comissão da Verdade”. “Falar do meu pai era doloroso. Quando a gente passa a ter uma agenda propositiva, traz alegria.”

Os 19 – Um dos vídeos do memorial lembrava a história de um Brasil que “esteve à beira do abismo. Da fome, da miséria, da violência, do desrespeito aos movimentos social e sindical, à luta dos trabalhadores. A democratização começou a mudar esse quadro, que ainda tem tanto para caminhar.” Sob aplausos, o mestre de cerimônias disparou: “Não tem como, diante de um vídeo como esse, não perguntar: quem matou os 19?”, referindo-se às vítimas da chacina em Osasco e Barueri, na noite de 13 de agosto.

Foi a deixa para a secretária de Educação do governo de MG, Macaé Evaristo, lembrar a escravidão de milhares de pessoas com que “se fez nosso país”. “Muito importante um memorial que não conta a história que a gente aprende no ensino fundamental: sempre falavam da grandiosidade dos impérios e da queda, mas a gente não entendia onde estavam as pessoas”. A professora reforçou: “Se quisermos seguir de fato fazendo com que os jovens consigam continuar essa jornada, não podemos esquecer tantas lutas.”

Que nem pai e mãe – O grande personagem da noite foi chamado ao palco pelo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques. “Passaram-se 27 anos desde que se promulgou nossa Constituição. E há um personagem que se dedicou a garantir cidadania a milhões de brasileiros, colocou o povo como protagonista da implantação de políticas públicas que tiraram milhares da miséria, colocou milhões de jovens nas universidades, fez o Brasil respeitado lá fora. Mais democracia implica em mais oportunidades e quem fala sobre isso é Lula.”

O ex-presidente da República começou lembrando que, além do memorial, o website Brasil da Mudança conta a história das políticas públicas que foram feitas no país. E revelou o autor da ideia do novo memorial: Fernando Haddad. “Vocês estão percebendo que está apenas com dois blocos. Escolhemos um período... Pensamos em fazer desde o descobrimento do Brasil. Qualquer data vai sobrar um pedaço de história para contar.”

Bem-humorado, o presidente mencionou um trecho do livro de Heloísa Starling. “Em 1520 um português malandro foi escrever para o rei de Portugal que os preguiçosos que moravam aqui não pronunciavam o som das letras 'f', 'l' e 'r'. O malandro fez que nem a imprensa faz com nós, todo dia... Não pronunciavam porque os índios não tinham fé, não respeitavam a lei, nem o rei. Já criminalizavam os índios naquela época. Acho que a partir dessa história, podemos contar um pouco a história da democracia no nosso país.”

E lembrou de seus tempos de metalúrgico, em 1973, com o general Emilio Garrastazu Médici na presidência. “Democracia para os trabalhadores era ter emprego e salário. Ou seja, democracia não é uma coisa que está dada, precisa convencer as pessoas todo dia. Só dá conta da importância quando a gente perde, é que nem pai e mãe”, afirmou em mais uma de suas famosas metáforas.

“Se vocês imaginarem os direitos que perdemos quando veio o regime militar... Perdemos muita coisa: o Comando Geral dos Trabalhadores, a Liga Camponesa, sindicalistas presos e sem direitos políticos, mais de 500 intervenções em sindicatos e federações, trabalhadores demitidos por razão de segurança nacional, em lista que não arrumava emprego em lugar nenhum. Camponeses e trabalhadores mortos... Todo santo dia temos de discutir o significado da democracia”, reforçou.

E destacou os dias de hoje: “Liberdade é uma coisa tão extraordinária e é importante que a gente tenha noção que não tem nada mais sagrado. Considero o momento delicadíssimo. Um momento da irracionalidade emocional da sociedade brasileira. Durante a campanha a gente dizia em alto e bom som que a democracia não era um pacto de silêncio, mas para se manifestar e conquistar direitos. Pessoas baterem panela é ato democrático, mas empregada vai ter de lavar e é mais complicado se estiver amassada. A única coisa que temos de medir são as consequências e se estamos fazendo aquilo que nos propusemos a fazer. E medir a pressão para saber porque estão se manifestando. Temos de lutar e debater com quem está querendo o fim da democracia”, afirmou, elencando uma série de conquistas contra as quais as manifestações de rua se colocam, como os direitos das domésticas, a valorização do salário mínimo, as cotas. “A gente tem de conseguir mapear a diferença das coisas, o que reivindicávamos e o que eles reivindicam hoje. Se a gente não fizer esse debate estamos enfraquecendo o processo democrático.”

Lula encerrou sua fala sob fortes aplausos e reafirmando uma convicção: “construímos o melhor momento de participação democrática nesse país. Espero que queiram disputar conosco mais democracia, mais participação popular... um governante nunca pode ter medo de fazer governo participativo. Grande parte das coisas boas aconteceram a partir daqui do ABC. Cometemos erros e tem muita coisa para fazer. Mas temos de levantar a cabeça e ter certeza: temos defeitos, mas ninguém fez mais pela democracia do que nós.”


Cláudia Motta – 2/9/2015
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