O padre Júlio Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na capital paulista, recebeu hoje (11) o Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, concedido pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da cidade de São Paulo. Em seu discurso, fez uma apaixonada defesa dos pobres, dos excluídos e da memória contra abusos e violências do Estado. A reportagem é da Rede Brasil Atual.
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Usando um boné preto com a bandeira da Palestina de um lado e do movimento zapatista mexicano do outro, foi muito aplaudido pelos poucos presentes (em razão da pandemia de covid-19) no Auditório da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo. “Estou de boné não por insolência. É uma homenagem aos zapatistas e à luta do povo palestino. Estou aqui em nome da maloca, dos catadores, patota da rua, LGBTGQI+, presos, presas, mulheres trans. Estes grupos. Negros, indígenas, quilombolas. Os odiados e perseguidos. Eles que estão aqui comigo”, disse.
Júlio nasceu em 1941 no bairro do Belém, em São Paulo. Toda sua carreira no sacerdócio foi dedicada na defesa das populações mais vulneráveis. Na década de 1980, foi designado vigário episcopal para o povo da rua por Dom Paulo Evaristo Arns, que tem seu nome no prêmio de defesa de direitos humanos – e de quem Padre Júlio diz sempre ser admirador. Dom Paulo é herói da resistência à ditadura civil-militar (1964-1985), na luta contra o Estado autoritário e, especialmente, contra a tortura aplicada por aquele regime.
Tempos sombrios
Padre Júlio recebe a homenagem em um momento novamente sombrio da história brasileira. Políticos, lideranças e uma parcela dos brasileiros, com o presidente Jair Bolsonaro à frente, defendem torturadores e a ditadura abertamente. O próprio padre Júlio é frequentemente alvo de ataques da extrema-direita, como faz o deputado estadual Arthur do Val (Patriota), o youtuber Mamãe Falei, que chama o trabalho de ajuda de Júlio junto ao povo da rua de “deplorável”.
“Mesmo que eu perca tudo, estou acostumado a perder tudo. Não me importa perder. Quero ser fiel até o fim. Quero lutar como lutam os zapatistas. Como lutou Zumbi, como lutou Antônio Conselheiro, Dom Paulo, Oscar Romero, santo da América Latina. Quero lutar até o fim. Mesmo que perdermos, lutaremos. Mesmo que nos destruam, não morreremos. Viveremos para sempre. Até o fim, até a vitória final da história e da luta dos pobres”, disse o padre, diante das ameaças e do presente desafiador, emocionado os que ouviram.
Recado direto
Júlio também cobrou mais respeito aos direitos humanos da própria prefeitura de São Paulo, que lhe concedeu o prêmio que recebeu. “Peço, aqui na prefeitura o compromisso. Que a Guarda Civil Metropolitana pare de bater nos moradores de rua. Que parem a repressão contra os moradores de rua. O que aconteceu na Cracolândia nesta semana é uma vergonha. Isso faz o nome de Dom Paulo tremer junto com o nome da prefeitura. Não é possível o rapa tirar cobertas, comida, documentos, remédios dos moradores de rua. Não é momento de tratar os pobres como lixo. De tirar as coisas deles. “
O párico reafirmou sua disposição de luta e fez um apelo ao poder público. “Já apanhei da polícia militar, já levei choque, bala de borracha e bomba de gás. A luta contra a ditadura continua na defesa dos presos, pobres e moradores de rua. A comunidade LGBTQI+, negra, refugiados, estão na rua também. A rua é onde sobra tudo jogado. Vejo o povo com sede, com fome. Procure saber o que é o Jardim Rincão, aonde não chega nada. Não tem banheiro, água potável, lugar para dormir”, completou.
A secretária da pasta, Cláudia Carletto, estava presente, e discursou ao final do evento. Sem apresentar nenhum plano ou proposta que fosse ao encontro dos apelos do padre Júlio Lancelloti, ela disse que a gestão Bruno Covas (PSDB)” está aberta a receber e ouvir”. Por fim, afirmou que “precisamos lutar todos os dias pelos direitos humanos. Direitos humanos é a garantia de todos e, sobretudo, dos que mais precisam. População em situação de rua, negros, indígenas, enfim, pessoas que compõem nossa sociedade”.
Prêmio Alceri
O evento que homenageou Júlio foi o encerramento do 8º Festival de Direitos Humanos da SMDHC. Além do prêmio Dom Paulo Evaristo Arns, também foi entregue o 5º Prêmio Municipal de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva. O homenageado foi Anivaldo Padilha, também ligado à igreja católica, por sua resistência à ditadura civil-militar.
O mineiro Padilha nasceu em 1940. Foi liderança da juventude metodista e militante da Ação Popular, oriunda de ativistas da Juventude Universitária Católica e da Juventude Estudantil Católica, que vivia na clandestinidade. Por suas denúncias e oposição ao regime militar, foi preso e torturado por 22 dias. Foi um dos organizadores do ato ecumênico na Praça da Sé no dia 31 de outubro de 1975, liderado por Dom Paulo Evaristo Arns, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura.
Ontem e hoje
O homenageado pediu para que a memória dos horrores da ditadura não seja deixada de lado. “Precisamos contar a história, não só nós que temos as marcas nos nossos corpos. Mas todos. Em 1964, setores da classe dominante da indústria, agronegócio, bancos, junto com militares, deram um golpe de Estado. Instauraram uma ditadura, um Estado terrorista. Estabeleceram a tortura como método sistemático de interrogatório e como política de Estado. Havia uma política de extermínio. No Brasil, a classe dominante jamais aprendeu a conviver com a democracia. Os resquícios permanecem até hoje.”
Por fim, Padilha também falou sobre o atual momento do Brasil, em tom de lamento. “Recebo esse prêmio com alegria e reconheço que o trabalho pela memória e verdade é coletivo. Dedico o prêmio à memória de todos os companheiros e companheiras que morreram sob tortura nos porões da ditadura. Essas pessoas assassinadas. Estamos vivendo um dos piores momentos da nossa história desde a ditadura. Temos autoridades no Parlamento e no Executivo que negam a história, elogiam torturadores e assassinos.”