Em 31 de março de 1964, quase 55 anos atrás, tiveram início as movimentações que culminariam no golpe civil-militar que depôs o então presidente João Goulart e conduziu o Brasil para 21 anos de uma brutal ditadura, que não se absteve de censurar, sequestrar, torturar e matar cidadãos brasileiros. Foram mais de duas décadas sem liberdade política, de imprensa e de expressão.
Os trabalhadores também eram alvo da ditadura. Inúmeros sindicalistas foram presos e 563 sindicatos sofreram intervenção no período, entre eles o Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, que não se vergou e manteve a circulação da Folha Bancária Livre nos 20 meses de intervenção, com recursos oriundos de rifas e doações dos trabalhadores.
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Hoje, quase 55 anos depois do fatídico 31 de março de 1964, o presidente Jair Bolsonaro - admirador do regime militar, que prestou homenagem enquanto deputado ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) de São Paulo que, entre outras barbáries, ordenou a brutal tortura de Amelinha Teles e César Teles, levando os filhos do casal, então com 4 e 5 anos, para ver os pais dilacerados e assim tentar arrancar informações (assista relato no vídeo abaixo) – determinou que quartéis das Forças Armadas façam as “comemorações devidas do 31 de março”.
Algo a comemorar?
De acordo com o advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), Dimitri Sales, comemorar o 31 de março é o mesmo que comemorar o arbítrio, a barbárie e o retrocesso.
“Não podemos comemorar um golpe, um ato que viola as conquistas em favor da dignidade humana, da dignidade política e da democracia. Sendo essa democracia entendida como um processo histórico de amadurecimento na relação entre sociedade e Estado. Comemorar um ato como este é comemorar o arbítrio, a barbárie e o retrocesso”, enfatiza.
Para o especialista em direitos humanos, a atitude do presidente tem graves consequências para a sociedade brasileira.
“Temos que contextualizar o discurso do Bolsonaro. Ele ainda está em uma disputa em torno de uma ideia precária de sociedade que o conduziu a presidência. A consequência [de incentivar a comemoração do 31 de março] é afirmar um discurso de violência de Estado e de impunidade às violações aos direitos de toda pessoa humana. Bolsonaro, ao agir dessa forma, conduz a sociedade brasileira para uma marcha de retrocessos em termos de civilização humana. Uma consequência direta é o aumento da violência de Estado e a perda de direitos da cidadania em um contexto que deveria não existir ou já ter sido superado: da apologia da violência como solução dos problemas sociais”, avalia Dimitri.
Quais as razões para uma parcela da população admirar a ditadura
Segundo o presidente do Condepe, a razão pela qual uma parcela da população mantém um sentimento nostálgico para com o regime militar e até mesmo pede a sua volta é o fato de que o Brasil não tratou as feridas abertas no período.
“Nós não tratamos das feridas abertas da ditadura. Aprovamos uma lei de anistia que resultou na manutenção da impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Não punimos os agentes de Estado que praticaram crimes contra a humanidade como tortura e desaparecimento forçado de pessoas, violações a um consenso universal que defende a primazia da dignidade da pessoa humana. Criamos uma cultura de violência que se perpetua até os dias de hoje”, defende.
Para Dimitri, é mentiroso o discurso de que durante a ditadura militar não existia corrupção e que escolas e outros serviços públicos eram melhores.
“Na verdade, o que não se tinha era liberdade de imprensa, de manifestação; não havia pluralismo político e, portanto, forjou-se uma ideia de valorização do regime ditatorial. Em contrapartida, os fatos históricos apontam para uma sociedade controlada, que vivia sob o manto do terror. Práticas institucionalizadas de censura, tortura, estupros, execuções sumárias, desaparecimento de pessoas, dentre outros crimes de lesa humanidade. A ausência de liberdades e o controle do Estado sob a vida social impediram a construção de uma verdadeira narrativa sobre o período ditatorial e sobre as tragédias geradas para as gerações presentes. Além disso, determinadas versões, que tentam festejar o golpe, se voltam para legitimar novas formas de autoritarismo, violência politica e restrição das liberdades democráticas. Tudo isso como instrumento de controle do Estado pelas mãos daqueles que sempre detiveram o poder’, enfatiza.
“Nas palavras de Caetano Veloso, o macho adulto, branco, sempre no comando”, reforça Dimitri
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Consequências
Segundo o advogado, a sociedade brasileira convive até hoje com consequências do nefasto período da ditadura militar. “A gente não democratizou a política de segurança pública. Ainda temos uma polícia militarizada, que substitui a concepção de segurança cidadã por ideologia de guerra, priorizando alguns segmentos sociais, como negros e pobres, como sendo os inimigos a serem exterminados. A principal consequência da ditadura é a cultura de menosprezo aos direitos humanos enquanto projeto comum da civilização humana, a exaltação de um estado violento que não assegura plena cidadania para todos”.
Ditadura nunca mais!
Por fim, o presidente do Condepe alerta para o fato de que vivemos um período de crise profunda, no qual a democracia está ameaçada.
“Estamos vivendo um contexto de crise profunda, com a democracia em franca ameaça. A primeira medida para evitar o retrocesso é resgatar a democracia e o pluralismo político como valores fundamentais da nossa república, reestabelecendo a autonomia da política e a legalidade como vetores de organização da sociedade brasileira. Além disso, favorecer diálogos em torno da importância da dignidade politica e do respeito as diferenças sociais e culturais como pressuposto a convivência de todos os sujeitos democráticos na relação entre estado e sociedade, em que a sociedade efetivamente exerça o controle sobre o Estado”, conclui Dimitri.