Ao continuar no governo como se estivesse em uma espécie de campanha eleitoral permanente, o presidente Jair Bolsonaro age como um CEO de empresa que tivesse que fazer um “trabalho sujo”. Neste caso, avalia a escritora e filósofa Marcia Tiburi, o “trabalho” envolve promover a perda de direitos da classe trabalhadora e fazer o Estado cumprir o papel que lhe seria destinado dentro do contexto neoliberal: servir aos mais ricos.
Para Marcia Tiburi, a reversão do atual quadro exige uma resposta de instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e também uma união das forças que se contrapõem a esse sistema, a despeito de projetos pessoais e partidários.
A reportagem é da Rede Brasil Atual.
“(É preciso) Rever o que significa ser um partido de esquerda diante do fascismo porque não basta lutar de forma isolada. Nós seríamos destruídos, mesmo que sejamos as mentes mais brilhantes, com as posições morais e éticas mais verdadeiras, para enfrentar essa posição bizarra do governo, destrutiva, genocida, matadora, porque o que está em cena é um projeto biopolítico, necropolítico, tanatopolítico que implica a matabilidade das pessoas”, pontua.
Punção de morte
No atual contexto, Bolsonaro seria uma arma das oligarquias e do grande capital. “A luta dos trabalhadores tem que ser contra a guerra feita por essas oligarquias, pelos ricos, pelos grandes capitalistas. Uma guerra que tem Bolsonaro inteiro, seu corpo, como uma arma.”
“Esse é o corpo sacro do poder, desse presidente acéfalo, oligofrênico, servil, que não sabe se expressar, se pronunciar, se colocar, e que é muito útil, por isso não é retirado de cena. Dilma foi retirada da cena porque não era útil às oligarquias. É assim que, a meu ver, funciona o jogo de poder nesse momento no Brasil”, aponta.
Ouça a íntegra e confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Marcia Tiburi a Glauco Faria e Marilu Cabañas, no Jornal Brasil Atual desta terça-feira (21).
Trabalho sujo
Um aspecto notório para muitas pessoas é o estilo de governo do presidente. Ele parece ter definido um paradigma de governo, como se continuasse em campanha política. À medida em que ele fica no papel daquele que discursa, os outros membros do governo e a oligarquia que rege o Brasil entram em ação, tirando os direitos da população, principalmente dos trabalhadores.
A função, a meu ver, de Bolsonaro é a de se colocar nessa posição e produzir esse discurso de mistificação. Ele aposta naquilo que sempre apostou, junto com todos os seus congêneres e comparsas, que o aplaudem.
É como se Bolsonaro fosse aquela figura que tivesse que fazer o trabalho sujo. É muito comum em empresas que estão com problemas econômicos ou que têm algum tipo de interesse mais nefasto que se contrate uma pessoa para “cortar cabeças”, fazer terrorismo, assédio moral. Acho que o Bolsonaro é essa pessoa, uma espécie de CEO de uma empresa colocado ali por toda uma corporação, pelas oligarquias que se apoderaram do Brasil, os vampiros nacionais, para fazer essa cena.
Assim, ele consegue submeter a opinião nacional, controlar os meios de comunicação e até os críticos. Para Bolsonaro, uma crítica que façamos a ele hoje é inócua. Não adianta a gente falar, reclamar, desconstruir… Todos sabem quem é Bolsonaro e não há nenhuma dúvida quanto a seus objetivos, a pura e simples destruição. E nós que somos críticos desse projeto de governo e de país, falamos disso há muito tempo. Quando dizia que ele seria presidente do Brasil muitas pessoas do meio acadêmico falavam “Não, Marcia, imagina…”.
O que fica provado hoje é uma coisa muito terrível: nossa crítica adianta muito pouco, por isso nós precisamos de outras providências, daí a função dos líderes políticos, dos jornalistas que têm paz e podem falar, das figuras presentes no Executivo, e do STF – se ele tiver vergonha e auto-respeito – que também vai ter que fazer alguma que possa nos livrar dessa figura abjeta que tem conspurcado a nossa democracia.
As oligarquias e a democracia
A democracia pouco importa para os sujeitos donos desse poder e eles se sentem seguros. Essa segurança é dada a eles também por uma oposição muito fraca, em que pese o heroísmo de deputados, senadores, há vários que são oposição a esse governo. Há inclusive gente do Judiciário que se contrapõe a esse estado de coisas. Mas de fato é um sistema, um dispositivo que funciona de uma maneira em que é difícil interromper esse processo.
Seria preciso uma união de forças que se contrapõem a esse sistema, mas a própria articulação é muito difícil, seja por conta de projetos pessoais de poder e às vezes projetos partidários confusos, que precisam rever sua posição diante do fascismo. Rever o que significa ser um partido de esquerda diante do fascismo porque não basta lutar de forma isolada. Nós seríamos destruídos, mesmo que sejamos as mentes mais brilhantes, com as posições morais e éticas mais verdadeiras, para enfrentar essa posição bizarra do governo, destrutiva, genocida, matadora, porque o que está em cena é um projeto biopolítico, necropolítico, tanatopolítico que implica a matabilidade das pessoas. E já são absurdos os números formais, além das pessoas que estão morrendo de doenças ligadas ao coronavírus mas que não têm o diagnóstico porque não estão sendo testadas.
A postura do líder é muito importante. Nesse momento, o Brasil está sendo destruído por um personagem que é um Golem de Trump sem cabeça. A própria figura que simboliza o máximo poder da nação não tem funcionado em prol da nação, mas para destruir a nação dentro de um entreguismo ao império americano e ao capital internacional como um todo.
A utilidade de Bolsonaro
E, para além de qualquer tipo de conspiracionismo ou de perspectiva que escape da racionalidade necessária para entendermos esse momento, temos que ver também que tem algo que é o puro e simples funcionamento da incompetência. E, nesse sentido, Bolsonaro é muito útil porque ele é muito incompetente. É muito útil para as oligarquias que vivem desse processo de pilhagem do país.
A luta dos trabalhadores tem que ser contra a guerra feita por essas oligarquias, pelos ricos, pelos grandes capitalistas. Uma guerra que tem Bolsonaro inteiro, seu corpo, como uma arma. Hoje, inclusive, é um corpo que se coloca numa posição muito complexa. Ontem mesmo disse: “Eu sou a Constituição”, como um rei francês, e foi muito bizarro, ridículo e grotesco, e também algo que é verdadeiro. Esse é o corpo sacro do poder, desse presidente acéfalo, oligofrênico, servil, que não sabe se expressar, se pronunciar, se colocar, e que é muito útil, por isso não é retirado de cena. Dilma foi retirada da cena porque não era útil às oligarquias. É assim que, a meu ver, funciona o jogo de poder nesse momento no Brasil.
O Estado para os ricos
Qual é a situação? Existe uma governamentalidade, as oligarquias, os donos do capital – que são também os donos do poder político no Brasil, como sempre –, essa mistura difícil de ser superada e que envolve uma corrupção em si do sistema. E se a gente juntar aí a religião, temos um terceiro elemento que vem compor uma conspurcação muito forte do sistema político brasileiro, e vemos esse todo na rapinagem contra o Estado brasileiro, fazendo do Estado o que o neoliberalismo deseja, uma instância de governo dos ricos para os ricos. Vide o que acontece com o trilhão dedicado aos bancos há poucas semanas, enquanto os pobres que passem fome. É essa a mensagem que o governo tem dado.
De um lado há isso: Bolsonaro sendo uma figura útil nesse contexto, como o incompetente, o que é louco ou se faz de louco, como o estúpido, o burro… Pode ser que Bolsonaro não seja nada disso, vou preservar aqui a figura pessoal. Não sei quem é e não vem ao caso. O que importa é que essas figuras políticas fazem parte de uma cena, e a cena que Bolsonaro faz é de um sujeito paranoico, demente, oligofrênico, estúpido além do normal, incompetente, que não tem a menor condição de governar, administrar e representar o país.
‘Eu não sou coveiro.’ Ou é?
Embora Bolsonaro seja usado pelo poder do todo, existe o poder dele mesmo, pelo simples fato de que inevitavelmente é ele mesmo que está investido com seu corpo físico, seu lugar de sujeito histórico, dessa posição de presidente. E aí ele faz esse discurso e não está sozinho nisso, os ministros, inclusive esse novo ministro da Saúde, fazem esse discurso, daquilo que Freud chamava de pulsão de morte, a oposição ao amor e à vida.
Ontem, quando se fez uma pergunta das mortes que avançam no Brasil pela covid-19 e ele responde: “Eu não sou coveiro”, em psicanálise a gente chama isso de denegação. É como se ele estivesse dizendo “Eu sou o coveiro sim”, mas preciso dizer que não sou. E preciso dizer mesmo que ninguém tenha me acusado ou perguntado porque eu mesmo, nas instâncias da minha subjetividade, por mais burro e idiota que seja, sei o que estou fazendo. Então preciso mascarar a verdade, saindo na frente e dizendo aquilo que não é, quando, na verdade, é. Quando a gente faz um discurso dizendo “eu não quero dizer que…”, o inconsciente não funciona na base desse tipo de negação, ele traz a verdade e o discurso consciente faz a negação para enganar os outros.
Isso também tem uma outra função no cenário político, que é o que podemos chamar de “retórica do desnorteio!”. Qual a função de Bolsonaro nisso tudo? É desnortear, por isso ele vai no Twitter falar – seja ele, o filho ou o assessor, não importa –, ali existe uma função clara de emitir informações chocantes, estranhas, misturadas com algumas informações verdadeiras, outras menos verdadeiras, outras falsas, criando um complexo de desinformação que tem como efeito o desnorteio da população.
Esse discurso de morte, matança, a banalização do genocídio, do assassinato, ajuda Bolsonaro e as oligarquias dentro desse contexto. E oferece também – por isso figuras como João Doria e quetais estão vibrando – a chance daqueles políticos que almejam avançar na história futura e próxima, de se afastarem dessa figura que é tão criticada por uma certa direita, que ajudou a colocar Bolsonaro nesse lugar, e que hoje percebe que não lucra mais politicamente com essa figura que é Bolsonaro e acha que precisa fazer uma outra cena. E acho que precisamos olhar melhor as cenas que são feitas na política brasileira, porque aí temos um parâmetro mais lúcido para a análise, do ponto de vista das teatralidades que estão dadas.