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Não há política de direitos humanos sem democracia

Linha fina
Para secretário, agenda brasileira "corre todos os riscos possíveis" se houver mudança de governo. Ele avalia que o país "não elaborou o seu processo histórico", aceitando o conservadorismo
Imagem Destaque
São Paulo – O secretário especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili, esteve na Argentina no início do mês, participando de atividades que articulam o próximo Fórum Mundial dos Direitos Humanos, previsto para maio do ano que vem, em Buenos Aires. Foi bastante procurado por meios de comunicação, inclusive alternativos, que queriam saber da situação do Brasil, "dada", como escreveu, "a única linha editorial de circulação de opiniões e informações da mídia hegemônica brasileira sobre o que estava acontecendo no nosso país". A todos, falou sobre "o descaso de um setor político com a democracia e a legalidade, além do machismo, da misoginia e do 'punitivismo' descontrolado, típicos de figuras e momentos autoritários".

"De alguma forma, percebi que o estrangeiro está mais bem informado sobre o que acontece no Brasil", conta Sottili, para quem a manipulação de informações, aqui, atingiu um nível de saturação. "Todo o monstro está sendo desmascarado. Há uma mudança de compreensão em relação à realidade no Brasil. Tanto é que os defensores do pato sumiram", avalia. Segundo ele, a votação na Câmara em abril, admitindo o processo de impeachment, expôs o país ao ridículo, mas ao mesmo tempo causou espanto pela constatação de que "havia no Brasil tanto espaço para o conservadorismo".

Para o secretário, que ainda manifesta esperança de ver o processo de impeachment barrado, a agenda de direitos humanos no Brasil, referência mundial, está seriamente ameaçada, à medida que sua base, a democracia, foi abalada. "O Brasil não pode ter recuo", diz, afirmando que o país conseguiu certo reequilíbrio social nos últimos anos, "e isso é inconcebível para certos setores". Dilma, Lula e o PT podem sofrer derrota eleitoral, "mas dentro do jogo democrático", acrescenta.

Ele observa que os perigos já se manifestam no Congresso, em tentativas de mudanças em temas como maioridade penal, desarmamento e união civil. Ou no projeto que propõe alterar o conceito de trabalho escravo, que tem como relator o senador Romero Jucá (PMDB-RR), cotado para integrar um possível governo Temer – a proposta é de retirar os termos "jornada exaustiva" e "condições degradantes de trabalho" da definição.

Esses e outros temas foram discutidos na 12ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada no final de abril. Na abertura, a presidenta Dilma Rousseff enviou mensagem ao Congresso pedindo urgência na apreciação de projeto de lei sobre autos de resistência, que prevê investigação de mortes e lesões cometidas por policiais em serviço.

Está havendo descaso com a democracia?
Um descaso ao Estado de direito. Você não tem a menor condição de tentar levar a sério que o Estado de direito seja um ponto de equilíbrio em relação a tudo que está acontecendo no Brasil. O processo de impeachment tem a cara da votação, tem a cara daqueles deputados. Esse movimento em que o presidente da Câmara dos Deputados identifica vários vícios, tentando chamar de volta para si o próprio processo, mas o presidente do Senado não aceita (referência à decisão, agora revogada, do presidente interino da Câmara, Waldir Maranhão, de anular a sessão do impeachment). E o Supremo não se manifesta. Há uma sensação de impotência gravíssima. E isso pode significar uma destruição da democracia. Não podemos conviver com a ideia de que as pessoas poderão fazer justiça com as próprias mãos. Na Argentina, havia consciência de que o problema não era do Brasil, mas da Argentina também, da América do Sul, do planeta. O que se passa aqui não pode ser exemplo para ninguém. Isso tem a ver com a forma que Brasil organizou seu processo histórico. Na Argentina, não há possibilidade de um deputado se manifestar pela tortura. Lá não acontece isso, porque os torturadores presos. Por isso, se perde eleição, mas de forma democrática (o secretário faz menção ao fato de que, diferentemente do Brasil, a candidatura apoiada pela ex-presidenta Cristina Kirchner reconheceu a derrota para Mauricio Macri, em novembro).

O Brasil acabou de realizar a sua 12ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, reafirmando um compromisso do Estado de ampliar políticas que apontem para a promoção da igualdade. Essa agenda corre risco?
Total. Todos os riscos possíveis. Primeiro que a própria democracia está abalada, questionada. Como é que vamos pensar em desenvolver a promoção de direitos humanos se o valor fundamental foi abalado? Não existe a menor possibilidade. Segundo, as consequências são brutais, e elas já estão sinalizadas. Como você pode acreditar em discutir os direitos da criança e do adolescente com Bolsonaro? E essas pessoas poderão ser a base do governo, se esse processo de impeachment se confirmar. Já tem gente discutindo a redução da maioridade para 12 anos. Ou (no Estatuto da Família) sem a menor possibilidade de considerar pessoas do mesmo sexo, na contramão do Supremo Tribunal Federal.

São princípios...
Não está em discussão o governo da presidenta Dilma, ou o PT, ou a base do governo. Você não precisa gostar de nada. O que está em discussão é a democracia. Não é bandeira de partido nenhum. No PSDB há figuras emblemáticas na luta pelos direitos humanos, mostrando que são direitos fundamentais. O deputado (estadual, em São Paulo) Carlos Bezerra é um importante aliado,como tem o (ex-ministro) José Gregori e outros.

Quais os avanços da conferência?
Gostaria de falar dos principais compromissos extraídos das mais de 300 propostas, muitas delas aprovadas por amplas maiorias que pedem aumento de ações de transparência ativa, comprometimento dos estados e municípios com o fortalecimento dos Conselhos de Direitos, o aprofundamento da participação; a retomada dos conteúdos de direitos humanos na Educação como demanda para todo o país, a reafirmação do PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos) como o mais importante marco normativo e político sobre direitos humanos no país e a demanda para que os órgãos do governo federal deem prioridade às suas diretrizes quando da formulação e implementação de políticas públicas em todas as áreas. Acho que um dos principais avanço que tivemos foi o próprio momento produzido em si, ou seja, a congregação de diversos grupos e populações de direitos, vindos de todo o país, que nos mostraram que os direitos humanos são de fato indivisíveis, e promovendo o reconhecimento da alteridade – não é porque o outro é diferente de mim que não somos iguais em direitos.

Em um possível novo governo, movimentos como o dos estudantes em São Paulo seriam possíveis?
Em primeiro lugar, eu ainda tenho muita esperança de que o impeachment não vingue. É importante considerar o que aconteceu hoje (ontem), que coloca mais dúvida sobre o processo que está sendo construído. Se for confirmado, os próximos dias serão de muita emoção e pode acrescer e muito a insatisfação popular, social. Considero que pode haver uma sensibilização do Senado. Em se confirmando, quais são as possibilidades reais que o novo governo terá? Ele terá muita dificuldade, que se expressa pelos movimentos sociais espontâneos – não estou falando dos movimentos organizados. O que existe em São Paulo não é nada organizado, é uma juventude que mostrou gana por um direito fundamental, que é o direito à educação, que estava sendo tomado dela. Será um campo fértil à medida que haverá um governo muito pouco sensível para as demandas sociais. Acho que teremos dias muito difíceis, mas muito fortes do ponto de vista da mobilização social.

Nossa democracia ainda demonstra fragilidade, que se reflete nessa dificuldade de fixar uma agenda de direitos humanos?
É impressionante como o Brasil é uma referência internacional na política pública de direitos humanos. Os programas não existem no mundo inteiro. O Brasil reúne as principais experiências. É engraçado como o Brasil conseguiu construir essa política em uma conjuntura vulnerável, onde ainda há uma cultura da violência e há um monopólio dos meios de comunicação. Você tem, primeiro, um partido que governa este país há 13 anos comprometido com os direitos humanos, um prefeito de São Paulo completamente comprometido com os direitos humanos. Transcidadania, política para imigrantes, direito à memória e à verdade... Mas tudo isso porque tinha o tapete da democracia. Hoje, muitos partidos não têm mais compromisso com a democracia, são um fator de desestabilização. O país não elaborou seu processo histórico, não fez a regulamentação dos meios de comunicação. E há a questão da educação: é preciso dar um cavalo de pau e melhorar a qualidade, em valores de direitos humanos, sem manipulação ideológica, como formação em cidadania mesmo. O que não pode é extrapolar o seu direito à cidadania com golpismo, violência, tortura, regime de exceção. Para se preservar a liberdade de expressão, você tem de ter regulamentação dos meios de comunicação, informação de qualidade, responsabilização. É um reducionismo falar que isso depõe contra a liberdade de expressão.


Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual - 11/5/2016
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