São Paulo - Repercutiu intensamente na mídia internacional a carta pública (leia abaixo) divulgada por um grupo de 93 diplomatas e 25 oficiais e assistentes de chancelaria do Itamaraty, com severas críticas ao "uso da força" contra manifestações populares no Brasil pelo governo de Michel Temer. O foco do documento, segundo matéria da Rede Brasil Atual, é a repressão às mobilizações em Brasília no dia 24 de maio, o Ocupa Brasília. Segundo a BBC Brasil, o grupo pede que líderes políticos "abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país".
A partir de informações veiculadas pela agência Associated Press (AP), diversos sites informaram que "dúzias de manifestantes ficaram feridas e vários veículos jornalísticos de notícias captaram imagens da Polícia Militar atirando em manifestantes".
As informações originárias da AP, segundo a qual "mais de 100 diplomatas brasileiros se manifestaram contra a administração do presidente Michel Temer", dão conta de que Temer "emitiu um decreto para usar tropas (do Exército) para proteger edifícios públicos em Brasília, uma medida que foi criticada pela Suprema Corte (STF) e líderes-chave do Congresso".
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Com o título Diplomatas brasileiros criticam Temer por repressão a protestos, o jornal The New York Times também reproduziu a notícia originária da Associated Press. "A carta foi divulgada poucos dias depois que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (comandado pelo tucano Aloysio Nunes Ferreira) rebateu duramente críticas das Nações Unidas e OEA, que condenaram a violência contra os manifestantes na capital Brasília no dia 24 de maio".
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Segundo a reportagem de Ricardo Senra, da BBC Brasil em Washington, que conversou com sete dos diplomatas que assinam o texto, a gota d'água para a elaboração da carta foi a nota oficial divulgada pelo Itamaraty na sexta-feira 2, na qual o ministério brasileiro respondeu às críticas de órgãos internacionais de direitos humanos sobre a violência policial no país.
O documento do Itamaraty, endereçado a representantes das Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), usou termos agressivos e muito distantes da diplomacia.
"Tendencioso", "desinformado" e "de má-fé" foram alguns dos termos utilizados pela pasta de Aloysio Nunes Ferreira contra o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por suas críticas à violência policial nos protestos contra o governo em Brasília.
Porta-vozes dos organismos também criticaram a violência na Cracolândia, em São Paulo, e contra os sem-terra. O exemplo principal neste caso foi a ação que matou dez pessoas no interior do Pará no final de maio.
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A nota da AP esclarece que Temer era vice-presidente e "assumiu a presidência em maio de 2016, depois que sua antecessora, Dilma Rousseff, foi deposta e depois acusada por um processo que ela e seus apoiadores chamaram de golpe". A agência também informa que, na semana que vem, Temer enfrenta julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, "que pode removê-lo do cargo por suposto financiamento de campanha ilegal, uma acusação que ele nega".
De acordo com a BBC, o número de signatários seria quase o dobro dos que se dispuseram a assinar, se não fosse o medo de represálias. Os apoiadores teriam chegado a 180. "Muitos dos que concordam com o conteúdo temem ser removidos de seus postos, ou exoneração de chefias", disse à reportagem o conselheiro de uma embaixada que teria desistido de assinar o texto, apesar de concordar com seu conteúdo.
Segundo o El País, questionado por jornalistas em Washington, onde participa de reuniões da OEA, Aloysio Nunes despistou, dizendo que os autores da carta aberta têm liberdade para expressar suas posições. "Eu não faço caça às bruxas no Itamaraty e nunca farei", garantiu.
Leia a íntegra do documento dos diplomatas brasileiros:
DIPLOMACIA E DEMOCRACIA
1. Nós, servidoras e servidores do Ministério das Relações Exteriores, decidimos nos manifestar publicamente em razão do acirramento da crise social, política e institucional que assola o Brasil. Preocupados com seus impactos sobre o futuro do país e reconhecendo a política como o meio adequado para o tratamento das grandes questões nacionais, fazemos um chamado pela reafirmação dos princípios democráticos e republicanos.
2. Ciosos de nossas responsabilidades e obrigações como integrantes de carreiras de Estado e como cidadãs e cidadãos, não podemos ignorar os prejuízos que a persistência da instabilidade política traz aos interesses nacionais de longo prazo. Nesse contexto, defendemos a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse.
3. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a consolidação do estado democrático de direito permitiu significativas conquistas, com reflexos inequívocos na inserção internacional do Brasil. Atualmente, contudo, esses avanços estão ameaçados. Diante do agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população brasileira.
4. Para que esse diálogo possa florescer, todos os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão. Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais.
5. Conclamamos a sociedade brasileira, em especial suas lideranças, a renovar o compromisso com o diálogo construtivo e responsável, apelando a todos para que abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país. Somente assim será possível a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos humanos.