O prejuízo à vida das pessoas em detrimento do lucro de empresas é uma lógica perversa do chamado “mercado” cada vez mais prevalente no país. Em mais uma ofensiva em nome da saúde financeira de seus negócios, empresários de planos de saúde acabam de enviar ao Ministério da Saúde e ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, uma minuta de projeto de lei que acaba com a atual legislação para o setor – que apesar dos constantes ataques, ainda garante minimamente os direitos dos 47 milhões de brasileiros vinculados à assistência médica suplementar. A reportagem é da Rede Brasil Atual.
O projeto é arrogante: considera médicos, hospitais, doentes crônicos e idosos como inimigos a serem combatidos, conforme avaliação de especialistas no tema. A professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ligia Bahia, a presidenta do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Marilena Lazzarini, e o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Mário Scheffer tiveram acesso ao projeto. Todos afirmam que ele é predatório e que vislumbra concentração de mercado, ao aprofundar a divisão e a disputa interna entre prestadores de serviços. “É um projeto danoso ao Sistema Único de Saúde (SUS) que, já subfinanciado, passaria a arcar com os custos da desassistência promovida pela nova legislação e perderia recursos com o fim do ressarcimento”, destacam.
No documento Novo golpe dos planos de saúde: querem cobrar e não atender, eles fazem uma análise preliminar do projeto que, em 89 artigos, reduz coberturas e atendimentos, libera reajustes de mensalidades, acaba com o ressarcimento ao SUS, impõe controles ainda mais rigorosos que os atuais a médicos e hospitais, alivia multas por maus serviços e torna insignificante o papel da já enfraquecida Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Conheça os principais pontos da proposta do empresariado:
Coberturas
Pelas regras atuais, os planos devem cobrir todos os problemas de saúde listados no Cadastro Internacional de Doenças (CID), as emergências em âmbito ambulatorial e hospitalar e as ações necessárias para tratamento e reabilitação. Pela proposta apresentada agora pelas empresas, a cobertura é fragmentada em módulos assistenciais à escolha: consultas médicas, apenas para atendimento básico, serviços diagnóstico e tratamento e terapias. As internações também serão fragmentadas conforme o plano escolhido: internação de emergência, internação em UTI, pagamento de honorários de profissionais, exames e medicamentos, taxas para admissão em centro cirúrgico, acompanhantes para adultos.
Se o projeto vingar, uma pessoa que tenha comprado plano apenas com módulo consulta médica com especialidades médicas básicas, não teria cobertura para consultas com médico especialista. Nem para exames diagnósticos. E quem tiver contratado módulo de internação para condições clínicas não teria direito a UTI, mesmo que tivesse uma pneumonia agravada, por exemplo. E para ter direito a cirurgias, teria de contratar módulo específico que inclua pagamento de taxas de uso de centros cirúrgicos.
A proposta subverte o conceito de internação hospitalar, pautado no conjunto de diagnóstico e terapias necessários para a recuperação da saúde. E também a racionalidade de cuidados que não podem ser previstos.
Prazos para atendimento
Atualmente, há um prazo máximo de sete dias para uma consulta para pediatria, clínica médica, ginecologia, obstetrícia e cirurgia geral – que são especialidades básicas. Para outras, 14 dias e 21 dias para internações eletivas. Pela proposta das operadoras, os prazos poderão ser descumpridos sem punição. Perde o usuário de convênios, que pode ter sua saúde prejudicada pelo avanço de uma doença que demorou a ser avaliada em uma consulta médica.
Livre escolha
O projeto amplia e oficializa barreiras que impedem que o pacientes e seus médicos tenham liberdade para escolher especialistas, locais de realização de exames e serviços credenciados. Na prática, permitiria que as operadoras exijam autorização prévia para atendimentos, exames e procedimentos, determinar os locais de atendimento. Assim, a melhor rede credenciada não seria mais acessível e não passaria de chamariz para novos clientes. E as juntas médicas contratadas pelas operadoras trarão conflitos de interesses, impasses éticos e atritos entre médicos. Mais um prejuízo para os usuários.
Doentes e idosos
O acesso desse público é permitido aos planos, embora sejam mais caros e imponham carências para quem tem doença pré existente. Os reajustes são anuais e também em caso de mudança de faixa etária. Quem tem mais de 59 anos pode pagar até seis vezes mais do que quem tem menos de 18.
Pela proposta dos planos, essas pessoas poderão ser excluídas previamente de planos coletivos e por adesão por ser classificadas como causadoras de despesas com saúde. E haverá mais flexibilidade nas regras de reajuste e até mesmo planos com preços reajustados a cada ano de vida.
Uma perversidade. Na prática, operadoras poderão excluir doentes e expulsar idosos com aumentos cumulativos e em progressão geométrica. Trabalhadores dos setores públicos e privados poderão ser impedidos de vincularem dependentes.
Co-participação
Hoje limitado a 40% do valor, o pagamento por atendimento e as franquias são proibidas para pacientes crônicos. E em caso de internação, é de um único valor fixo – o Brasil é o único país a permitir esse tipo de cobrança. O projeto prevê a desregulamentação da co-participação e franquia, que passam a ser cobrados em todo tipo de atendimento, com valores escalonados, aumentando conforme acordos discutidos individualmente entre clientes e operadoras. E ao permitir que cada empresa determine suas regras para eventos e valores a serem cobrados, poderá negar atendimento a quem pagou o plano por muitos anos.
Reajustes
As operadoras querem vincular o aumento do valor da mensalidade à variação do custo médico-hospitalar e das novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas. Além disso, querem reajustes específicos conforme a região e os tipos dos módulos contratados.
Com isso, seria possível impor aumentos abusivos sob o argumento de se protegerem do aumento dos custos assistenciais. Atualmente, a ANS estabelece o reajuste anual para planos individuais. E para os coletivos ou contratados por empresas, as operadoras é que determinam.
Ressarcimento ao SUS
Pela proposta, caberá ao sistema público avisar as empresas pelo atendimento prestado a seu cliente. Essas deverão contatar o serviço do SUS e providenciar a transferência do paciente para sua rede conveniada. Porém, não há prazo estipulado para que essa transferência seja feita. E o ressarcimento só será feito caso o paciente não tenha sido transferido. O projeto ainda extingue o sistema de informações que cruza o cadastro da ANS e a produção de atendimento do SUS, além de desobrigar as empresas de pagar pelo atendimento a casos graves, que a pessoa não pode ser transferida. Se fosse pouco, prevê que os valores de ressarcimento passam a ser os mesmos do SUS, mais baixos que os estabelecidos pela ANS.
Multas
Se depender do projeto, serão perdoadas ou cobradas conforme a capacidade financeira dos planos de saúde. E no caso de muitas multas, pelos mesmos motivos, serem aplicadas em um determinado período para que sejam contabilizadas conjuntamente. Seria estabelecido teto para o valor das penalidades, com redução conforme a capacidade econômica e porte da empresa e gravidade da infração.
As receitas obtidas com multas não poderão mais ser utilizadas pela ANS. Elas seriam direcionadas às próprias empresas, para custear atividades preventivas e de atenção primária. Atualmente, as operadoras exercem forte pressão para o cancelamento das penalidades e, quando são pagas, custeiam atividades regulatórias, como as que buscam inibir práticas abusivas pelas operadoras. Para os autores da análise, ao impor obstáculos à penalização das operadoras que negam ou postergam atendimento, o setor desfere mais um golpe contra os usuários.