São Paulo – A presidenta do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan), Christiane Gasparini Araujo Costa, divulgou nota dizendo que o órgão não foi consultado pela gestão do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB), sobre a criação do programa Alimento Para Todos, que propõe receber doações de sobras de alimentos que seriam descartados pela indústria ou comércio e processá-los para produzir um "granulado nutricional" distribuído à população de baixa renda. Ela se manifestou contra o projeto, segundo matéria da Rede Brasil Atual.
“Diante da magnitude deste processo vivido, incluindo a sua repercussão internacional, venho esclarecer à população de São Paulo, na condição de presidente do Comusan, que a iniciativa de produção e distribuição de um granulado nutritivo a ser entregue às populações que enfrentam carências nutricionais no município não foi encaminhada para apreciação do Conselho e não se alinha às diretrizes que vimos construindo com vistas a facilitar o acesso de toda a população à ‘comida de verdade’”, afirmou Christiane, no documento.
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A presidenta ressaltou que existe uma Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Decreto 57.007/2016) fixando as diretrizes que orientaram a elaboração posterior do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (2016-2020). “Tanto a fome como os índices de sobrepeso e obesidade, ao lado da epidemia de doenças crônicas em nossa cidade são problemas de saúde pública que devem ser tratados por meio das políticas públicas previstas no Plano e não por ações isoladas”, ressaltou.
O Conselho convocou uma reunião para o dia 26 com o objetivo de debater a proposta. O órgão existe há 14 anos e tem como finalidade “contribuir para a concretização do direito constitucional de cada pessoa humana à alimentação e à Segurança Alimentar e Nutricional”. O colegiado é formado por 45 conselheiros, sendo 30 da sociedade civil.
A Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos foi estabelecida pela Lei 16.704/2017, sancionada no dia 8. A partir dela, a prefeitura elaborou o projeto Alimento para Todos, em parceria com a Plataforma Sinergia, que consiste em produzir “um granulado nutritivo” que pode ser adicionado às refeições ou utilizado na fabricação de outros alimentos.
O composto vai ser produzido pela Sinergia e, a princípio, seria distribuído nas cestas básicas entregues pelos Centros de Referência de Assistência (Cras). Em seu site, a Plataforma Sinergia informa ter desenvolvido “um sistema de beneficiamento de alimentos que não são comercializados pelas indústrias, supermercados e varejo em geral. São alimentos que estão em datas críticas de seu vencimento ou fora do padrão de comercialização, razões que não interferem em sua qualidade nutricional ou segurança”.
Com a repercussão do caso, Doria convocou uma entrevista coletiva na manhã de quinta 19, ao lado do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer. E afirmou que “a Secretaria de Educação já foi autorizada a utilizar na merenda escolar, de forma complementar, o alimento solidário. Com todas as suas características de proteína, de vitamina, de sais minerais, para a complementação desta merenda”.
Da mesma forma que o Comusan, a Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae), órgão da Secretaria Municipal da Educação, não foi consultada antes de Doria mudar o discurso e dizer que vai incluir o produto na merenda das escolas municipais.
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O órgão técnico é incumbido do gerenciamento técnico, administrativo e financeiro do Programa de Alimentação Escolar da cidade. Dentre suas atribuições estão a definição de cardápios, aquisição e controle dos alimentos e fiscalização do fornecimento da merenda. Além disso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), ao qual o município de São Paulo está submetido, determina que todo alimento que se pretenda introduzir no cardápio das escolas deve ser avaliado por nutricionista e passar por teste de aceitação com os alunos.
Nesta quinta-feira 19, o Ministério Público (MP) paulista instaurou procedimento para apurar o uso da ração humana na merenda escolar e nos centros de acolhida para população em situação de rua, conforme anunciado pelo prefeito inicialmente. O MP quer prova científica e exame pericial que atestem o valor nutricional do produto. A prefeitura informou que “todas as informações solicitadas pelo Ministério Público ou qualquer outro órgão de controle acerca da política de combate ao desperdício de alimentos serão prontamente fornecidas”.
Na mesma quinta, o vereador Alfredo Alves, o Alfredinho (PT), conseguiu aprovar um requerimento para uma audiência pública sobre a ração humana na Comissão de Administração Pública da Câmara Municipal. Ainda não há data para a reunião. A vereadora Sâmia Bomfim está organizando um abaixo-assinado reivindicando uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o programa Alimento para Todos.
Serão convidados o secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará; a secretária municipal de Direitos Humanos, Eloisa Arruda; a presidenta do Conselho Municipal de Assistência Social, Fernanda Campana; o coordenador do Fórum de Assistência Social, Itamar Moreira; e a Nutricionista e pesquisadora Renata Levy (USP).
Nutricionistas contra - Especialistas ouvidas pela RBA se manifestaram contra a proposta por entender que ela contraria o direito humano a uma alimentação saudável. “É curioso São Paulo, a maior cidade do país, investir em uma política que é muito antiga, pelo menos 15 anos atrasada. É uma política que vai à contramão de tudo que a gente está produzindo para promover saúde”, afirmou Ana Carolina Feldenheimer, professora de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
Após a repercussão, o Conselho Regional de Nutricionistas (CRN-3) também se manifestou contra a proposta, por entender que contraria os princípios do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), bem como do Guia Alimentar para a População Brasileira. "Em total desrespeito aos avanços obtidos nas últimas décadas no campo da segurança alimentar e no que tange as políticas públicas sobre as ações de combate à fome e desnutrição", diz a nota publicada nas redes sociais do CRN-3.
As empresas doadoras de sobras de alimentos vão ter ganhos. Além de se livrar do custo de descarte, poderão receber incentivos econômicos da prefeitura de São Paulo. A proposta contempla possibilidades como concessão de empréstimos, “compreendendo a concessão de financiamentos em condições favorecidas, admitindo-se créditos a título não reembolsável”; criação de “programas de financiamento e incentivo à pesquisa e desenvolvimento de tecnologias” afeitos à proposta; e isenções do Imposto Sobre Serviços (ISS) e do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).