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Cidadania

‘Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista’

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Renato de Sousa Resende, Julio Césr Silva Santos, Lucimara Malaquias e Camila Torres Cesar durante evento para debater o combate ao racismo

“Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista […] Se você não se vê como parte do problema, não pode fazer parte da solução. Assumir a luta antirracista como sua significa descentralizar a branquitude que não quer igualdade, quer domínio.”

Com esta afirmação e parafraseando Angela Davis, ativista contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos, o juiz da 2ª Vara do Trabalho de Poços de Caldas (MG), Renato de Sousa Resende, reforçou a importância do posicionamento de todos, negros e brancos, na luta contra o racismo.

“Eu, como juiz branco, não poderia falar, com legitimidade, a respeito do racismo e da discriminação, pois eu não costumo sofrer as agressões que o racismo provoca […] Só a partir de certo momento que, como juiz, consegui compreender as vicissitudes que estão inertes em uma sociedade em que o racismo atua no seu modo operacional básico. Essa compreensão crítica do racismo é algo que ainda está em andamento, não é algo finalizado”, completou Renato, nesta terça-feira 25, durante evento no Sindicato dos Bancários de São Paulo, por ocasião do Mês da Consciência Negra.

Racismo estrutural na sociedade brasileira

O magistrado enfatizou o racismo estrutural na sociedade brasileira, por meio de um recorte da composição do Poder Judiciário, que é muito diferente da população brasileira.

O último censo de 2022 aponta que a população afro-brasileira atingiu um percentual de 55,5% considerados os pretos e os pardos. E no poder Judiciário brasileiro, os magistrados compõem uma maioria branca de 83,9%.

Segundo Renato, apesar das medidas que estão sendo tomadas pelo Judiciário a fim de mitigar este cenário, se calcula que a equivalência entre negros e brancos só virá a acontecer entre 2056 e 2059.

“Tem um longo caminho aí. Essa desproporcionalidade, pelo Judiciário, não é exclusiva daquele Poder. As instituições públicas, em geral, apresentam essa desproporcionalidade. Apresenta essa desproporcionalidade no Poder Legislativo, que é onde são criadas as leis, onde é criado o direito de trabalho. E também no Executivo, onde as leis são aplicadas. Então, se nas instituições públicas, nos poderes públicos, existe uma maioria branca, não é difícil perceber por que essa questão ainda não foi tratada suficientemente pelo direito de trabalho. Os próprios agentes da operação do sistema de relações de trabalho entram nessa mesma lógica de ficarem em silêncio diante da questão racial”, destacou Renato.

A advogada doutoranda em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo (USP), Camila Torres Cesar, complementou o raciocínio ao lembrar que a sociedade normaliza um Congresso Nacional formado por 70% de homens e 80% de brancos, em uma composição bastante diferente da sociedade brasileira.

“E a gente normaliza, igualmente, uma sistema penitenciário com 70% de pessoas jovens e negras. Mas por que isso é normalizado? Porque nossos olhos passam por isso com obviedade, como se fosse ‘Ah, é como é. É banal’. E, na verdade, não é como é, e não é banal. Isso foi estruturado e permanece.”

Os Trapalhões

Como exemplo da banalização do racismo, Camila lembrou o programa humorístico “Os Trapalhões”.

“Foi uma coisa que, durante muitos anos, foi considerada superlegal, superengraçada. Mas como um pacto de ter a imagem de um homem negro, como o Mussum, sendo considerado sempre o que chega atrasado, o beberrão, o que não tem compromisso, o que não trabalha, o que é o malandro. Será que eu, que passei a vida assistindo aquilo, ou outros programas, quando chegar em uma entrevista e tiver um cara que me lembra Mussum, e tiver um outro que eu vejo parecendo com os caras do Congresso Nacional, qual dessas imagens, para mim, conscientemente, vai me dar uma sensação de credibilidade?”, questionou.

Para Renato, esses estereótipos e essas dificuldades para a existência do negro na sociedade dificultam sua mobilidade na escala social e, em sentido inverso, facilitam ao branco, mesmo o pobre, a sua mobilidade.

“O trabalhador branco detém um salário psicológico em relação ao trabalhador negro. Os trabalhadores brancos, ao participarem de uma sociedade que naturaliza a raça como um juízo de classes, eles acabam se aproximando de outras classes e dividem com esses acesso a lugares públicos partilhando de um mesmo espaço de branquitude. Esse status social da branquitude constitui um capital simbólico e uma distinção apenas pelo fato de serem brancos, em uma sociedade organizada em torno de uma supremacia branca. Com isso, naturalmente, os trabalhadores brancos possuem maior propensão à mobilidade social na estrutura de classes e maior capacidade de acumular e transferir riquezas para as próximas gerações.”

Para corroborar este raciocínio, o magistrado citou um estudo da OCDE (Um Elevador Social Quebrado: Como promover a mobilidade social) segundo o qual, para alcançarem a renda média no Brasil, seriam necessárias nove gerações para pessoas nascidas de uma família de baixa renda que representam os 10% mais pobres da população, onde estão, na sua maioria, os negros.

“Tomar consciência dessa realidade faz com que a gente possa, então, pensar como eles se construíram. Qual papel eu posso ter para fazer com que essas diferenças sejam mitigadas ao longo do tempo”, argumentou Camila, enumerando uma série de medidas a fim de combater o racismo estrutural.

Como combater o racismo estrutural

  • Questionar a forma como nossa sociedade está estruturada, como são ocupados os lugares de poder;
  • Refletir sobre o papel das ações afirmativas, como as cotas, por exemplo;
  • Reconhecer os efeitos provocados pelo fato de nossa história ser ensinada quase exclusivamente a partir da perspectiva eurocêntrica;
  • Implementar práticas que tenham como referência importantes reflexões e ações comprometidas em apresentar nossas história a partir da perspectiva de quem efetivamente a construiu;
  • Admitir que em nossa sociedade normalmente os discursos e as práticas insistem que o natural é ser branco. Embora os negros sejam a maioria da população, esta parcela da sociedade ainda hoje é referida como minoria. Este é um dos motivos pelos quais as ações afirmativas são tão importantes para a transformar a sociedade;
  • Aprender e conversar em todos os ambientes sobre equidade racial e racismo;
  • Nas escolas, é imprescindível a utilização de livros, animações e referências positivas de pessoas negras;
  • Consumir e divulgar empresas e serviços de pessoas negras e indicar profissionais negros às vagas;
  • Votar e apoiar candidaturas de negras e negros com proposta antirracista;
  • Validar pessoas negras vítimas de racismo e não silenciar-se ao presenciar racismo;
  • Buscar informações em artigos, livros, vídeos sobre a temática étnico racial, conhecer autores e se aprofundar cada vez mais nestes temas;
  • Olhar para si e rever o racismo internalizado em você, os vieses inconscientes;
  • Repensar as situações do passado e presente;
  • Reconhecer seus privilégios;
  • Apoiar as ações que promovam a igualdade racial;
  • Conversar sobre questões raciais nos ambientes que frequenta;
  • Ser crítico ao que consome.

“Todos nós, sejamos negros ou brancos, podemos cumprir um papel de constrangimento pedagógico. Por que eu estou falando isso? [...] quando alguém não negro fala de privilégio branco, aquilo gera um constrangimento pedagógico no conjunto da sociedade. O negro fala de raça, sob a perspectiva do qual sente na pele, mas o branco pode também interagir sobre raça, quando possui sensibilidade e conhecimento assertivo do tema, ampliando o potencial de falar como aliado”, finalizou Julio Cesar Silva Santos, dirigente sindical bancário pelo Itaú e membro do coletivo racial do Sindicato.

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