São Paulo - Objeto de uma disputa judicial, a Lista Suja do Trabalho Escravo voltou a ser divulgada pelo governo federal há cerca de um mês. Mas, especialistas no assunto apontam que o número real de beneficiários da prática pode ser muito maior, chegando a mais 40 vezes a cifra oficial.
O procurador do Trabalho Tiago Cavalcanti, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), defende a necessidade de monitoramento e responsabilização de toda a cadeia produtiva que possa estar envolvida no trabalho análogo à escravidão.
“Aquela pessoa que diretamente contrata trabalho escravo não é o único beneficiário. Várias outras empresas também se beneficiam”, afirma. “Se há barateamento do custo de produção e trabalho precário na cadeia produtiva, é lógico que todos aqueles que se beneficiam do barateamento são corresponsáveis pelo que ocorre na base”.
Cavalcanti afirma que há uma tendência mundial nesse sentindo, citando legislações nacionais na Inglaterra e Estados Unidos, cujo objetivo é promover maior transparência empresarial, e a recomendação de 2014 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de medidas para combater o trabalho forçado.
“Com a fragmentação da cadeia produtiva – resultante da abertura comercial, sobretudo a partir da década de 1990 –, é a base desta que sofre as mazelas decorrentes do trabalho precário. No Brasil, também se tenta [através do MPT] responsabilizar aqueles que se beneficiam do trabalho escravo”, aponta.
O procurador diz ainda que o exemplo mais bem sucedido no tema é na área têxtil, conhecida pelo emprego de imigrantes sem documentação: “Há uma certa evolução dessa responsabilização em cadeia no setor de confecções, especialmente na cidade de São Paulo. Nesse setor há três escalões bem delimitados – oficinas de costura, as confecções e as grandes grifes. A gente vê nitidamente que todos se favorecem do trabalho escravo. Em outras cadeias, entretanto, a teia de fragmentação é muito mais pulverizada”.
Número - A AML Consulting, empresa especializada na elaboração de bancos de dados de “perfis sensíveis” relacionados à lavagem de dinheiro, tem voltado sua atenção para a questão.
A consultoria, a partir da lista oficial divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), cruzou as listas de pessoas indicadas com fontes de informações públicas. O resultado surpreende: das 68 indicações originais, a empresa chegou à estimativa de 3.100 pessoas físicas ou jurídicas que têm algum grau de envolvimento com a prática.
Alexandre Botelho, sócio-fundador da AML e consultor sênior em prevenção à lavagem de dinheiro e fraudes, explica que a lista de nomes – que não é pública – indica potenciais “beneficiários finais” do trabalho análogo à escravidão, ou seja, "pessoas que, em última análise, exercem um papel importante em uma empresa, seja na condição de acionista majoritário, sócio, administrador e mesmo aqueles que, eventualmente, não figuram no quadro da companhia, mas que de alguma forma influenciam nas decisões".
“A chamada lista suja do trabalho escravo traz um rol de empregadores. Por exemplo, é cadastrado o nome de um usineiro. A partir desta informação, fazemos um trabalho de busca de outras pessoas ou empresas que tenham ligações com esse usineiro e tenham, independentemente de terem praticado o ilícito, se beneficiado da prática do trabalho escravo”, continua.
O envolvimento com empresas ou pessoas que praticam trabalho escravo gera dois tipos de risco: legal e reputacional. O primeiro diz respeito às possíveis sanções jurídicas, ou restrições, como na vedação de financiamento de bancos públicos. Segundo Botelho, entretanto, a maior preocupação das empresas é a questão da imagem da companhia: “o setor financeiro, e cada vez mais áreas da economia, se preocupa com a reputação daqueles com quem se estabelece qualquer relação de negócio”, aponta o consultor.
Retrocesso - Tiago Cavalcanti atenta, por outro lado, que a tentativa de modificação da legislação trabalhista em curso no Congresso Nacional pode prejudicar o combate ao trabalho escravo.
“Essa reforma trabalhista que pretendem aprovar prevê um dispositivo que veda a responsabilização em cadeia. Isso cria um obstáculo jurídico [à nossa atuação]”, defende.
Ele lembra também que um dos pontos previstos nas alterações tem relação direta com a questão: a terceirização.
“Se você pegar os dados, a cada dez trabalhadores resgatados, nove são terceirizados. A terceirização anda de mão dada com todo tipo de fraude trabalhista. Em linguagem popular, é o câncer do direito do trabalho”, indica Cavalcanti.
Caso - A Lista Suja, iniciada em 2003, voltou a ser divulgada em 23 de março de 2017, após uma batalha judicial.
Desde 2014, a Lista vinha sofrendo restrições em sua publicização por conta de uma ação judicial da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O retorno da publicação, que estava judicialmente liberada desde 2016, ocorreu após ação do MPT que pedia que o Ministério fosse obrigado a divulgá-la. O MTE defendia a suspensão da publicação sob a justificativa de aprimorar critérios para “não prejudicar empregadores”.