São Paulo – Por volta de 2002, quase quinze anos depois de fixarem residência no assentamento atualmente chamado Hugo Chávez, no município de Tapes, no Rio Grande do Sul, as 26 famílias que ali viviam se deram conta de que as coisas não iam bem. Havia muita briga na comunidade e o dinheiro obtido com a venda do arroz estava sendo gasto com tratamentos de saúde – entre eles para a depressão. Foi quando a comunidade percebeu que a origem dos problemas era o uso de agrotóxicos na lavoura que estava repercutindo na saúde dos trabalhadores rurais.
"Naquele momento, a gente se deu conta que ou nós mudávamos a matriz tecnológica, ou era a nossa derrota como camponeses", lembra a moradora do assentamento Salete Carollo, 54 anos. "Percebemos que estávamos sofrendo uma derrota por conta da matriz tecnológica que trabalhávamos. Vimos que ninguém mais queria trabalhar no modo convencional porque a sobra que existia da colheita era gasta em saúde."
A situação limite os colocou diante da necessidade de fazer uma escolha decisiva: era preciso abandonar a maneira tradicional de cultivar o arroz, com uso de agrotóxicos, e partir para um novo modelo, o agroecológico. Com a ajuda de um profissional biodinâmico, João Batista Hoffmann, os agricultores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) decidiram então iniciar a mudança.
"Ele nos ajudou na transição, nos deu a técnica e a confiança", afirma Salete Carollo, destacando que a alteração não foi difícil por estarem convencidos de que não poderiam continuar no outro método.
"A nova tecnologia nos foi dando a viabilidade da saúde, da produtividade e da qualidade. Antes estávamos produzindo uma mera mercadoria e nos demos conta de que o alimento deveria ser saudável. A agroecologia não é só o alimento. A relação entre as pessoas muda, te traz outras perspectivas de existência e te faz pensar em outros valores para o ser humano."
Salete explica que as 26 famílias já tinham "uma vida bastante coletiva" desde a época do acampamento e a intenção eram manter essa característica depois que fossem assentados. A crise do modelo tradicional de plantio do arroz acabou criando as condições adequadas e os agricultores decidiram então se organizar em uma cooperativa, com todos os meios de produção agropecuária coletivos. "A alimentação saudável passa por esse novo paradigma. A natureza que está ali é um sujeito, assim como nós. Essa é a relação que se estabelece e isso nos alimentou para outro projeto de vida."
Cadeia produtiva - Depois de mudar a matriz tecnológica da produção do arroz, os assentados da reforma agrária perceberam que era necessário ir além e não podiam mais entregar a produção nas mãos do "atravessador". Era preciso estar à frente de todos os elos da cadeia produtiva.
"Foi então que instalamos a agroindústria pra beneficiar toda a cadeia da produção orgânica, organizamos a relação direta com o mercado e definimos a marca Terra Livre", explica Salete Carollo.
Nesse processo, diz ela, foi importante o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), este último criado em 2003, na gestão do ex-presidente Lula e atualmente parado sob o governo de Michel Temer.
"Não temos mais atravessador naquilo que produzimos como cooperativa", afirma Salete, enfatizando que hoje tal prática não se resume a produção do assentamento em que ela vive e agrega o trabalho de assentados que aderiram a matriz tecnológica do arroz orgânico de todo o Rio Grande do Sul.
Quase quinze anos depois da decisão de abandonarem o uso de agrotóxicos, a Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes (Coopat) está ligada a produção de cerca de 600 famílias gaúchas de 22 assentamentos diferentes e vende, por meio do PNAE, para escolas municipais, estaduais e privadas de 16 municípios do estado, alcançando mais de 85 mil pessoas por mês, além de escolas em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e nas cidades paulistas de São Bernardo do Campo, Campinas e São Caetano. Recentemente, a produção tem sido adquirida também pela Santa Casa de Misericórdia e o Hospital Moinhos de Vento, dois dos mais renomados hospitais de Porto Alegre.
De acordo com o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o MST se transformou no maior produtor orgânico de arroz da América Latina. "Quem conhece, quer o nosso arroz, porque ele tem um sabor, tem uma ideologia e é um alimento de qualidade", afirma Salete Carollo.
A alimentação como política - A agricultora de Tapes estima que, atualmente, mais de cinco mil famílias assentadas pela reforma agrária no Rio Grande do Sul atuam no modelo de cooperativas, unidas pela linha de produção que, além do arroz, funciona também para o leite, frutas, hortaliças e sucos. Somente em Porto Alegre há 22 feiras de produtos orgânicos onde os assentados comercializam sua produção agroecológica.
"A mídia tenta convencer as pessoas que o agronegócio é 'pop', é vida. Na verdade, a população está tomando consciência de que esse pacote do agronegócio está trazendo doenças, está matando", pondera Salete. "As pessoas começam a se dar conta de que querem vida e vida entra pela boca, por isso vão buscar um alimento que dê saúde. A comunidade começou a ter consciência e a criar uma nova cultura de alimentação. Hoje as pessoas estão se perguntando: 'O que estou ingerindo?'; 'De onde vem?'; 'Que modo de produção é esse?'"
Para a agricultora gaúcha, diante dos dois projetos em desenvolvimento no Brasil – o agronegócio e o agroecológico – o simples ato de se alimentar torna-se um gesto político, independentemente de posições partidárias. "A atitude do ser humano quando vai comer é uma atitude política. Alimentar-se é um ato político que vai além de simplesmente ingerir um alimento. A depender do que eu compro, eu fortaleço um projeto ou outro", destaca.
E para que o projeto agroecológico siga seu desenvolvimento, os filhos dos assentados da reforma agrária estudam agroecologia, agronomia com enfoque em agroecologia e administração de cooperativa. "São cursos para dar conta dessas demandas. Enquanto você é camponês individualmente, é uma condição, mas quando você decide se agrupar em cooperativa, onde todos os meios de produção são compartilhados, também há uma complexidade na gestão e é preciso ser eficiente em todas as etapas", explica Salete.
Afirmação de um modelo - Para a 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária, que terminou no domingo 7, os agricultores gaúchos trouxeram 25 toneladas de alimentos. O estande do Rio Grande do Sul já havia marcado presença na primeira feira, em 2015, porém em menor escala. Nos últimos dois anos, entretanto, houve um significativo avanço nas agroindústrias ecológicas, o que possibilitou passar dos oito produtos expostos em 2015, para 18 itens esse ano, incluindo, além do arroz orgânico, sucos de amora, uva, laranja e diferentes geleias.
"Nosso nível de organização no Rio Grande do Sul tem uma centralidade na cidade de Eldorado do Sul, onde construímos um prédio, e em Porto Alegre, que é como se fosse nossa pequena Ceasa", explica Salete Carollo.
Para ela, mais do que a oportunidade de vender os alimentos, a participação na feira é também um momento de mostrar para a população os benefícios da reforma agrária. "O mais importante é divulgar pra sociedade o resultado da reforma agrária. É tentar dialogar com a sociedade que a reforma agrária é urgente no Brasil, porque além de desconcentrar a terra, ela gera trabalho, alimenta o povo e traz outra perspectiva da agricultura. Aprendemos que é possível produzir o alimento orgânico em grande escala para alimentar o país, temos condições de produzir para abastecer todo o mercado brasileiro, provamos para nós mesmos e para a sociedade que é viável, tem fundamento científico e a prática está comprovando isso."
Segundo Salete, a imagem negativa do MST construída ao longo dos anos pela imprensa tradicional está sendo superada com o resultado dos assentamentos e a produção de alimentos saudáveis.
"A mídia mais burguesa não ajuda. Para ela, somos baderneiros, criamos conflito, um bando de vadios, um braço do PT e não é isso. Temos um projeto muito bem claro de agricultura, que passa por reforma agrária, produção de alimento saudável na agroecologia, cooperação, agroindústria e mercado. É isso", finaliza.